Por Luciana Ramos
“Meu país tem documentos históricos trancados em uma caixa preta. Era assim que eu chamava meu pai”. A narração de abertura do belíssimo “Fico te Devendo uma Carta Sobre o Brasil” indica importantes aspectos do documentário de Carol Benjamin: o tom pessoal, a distância emocional da diretora com o pai, com quem tenta se reconectar através da investigação do seu passado, e o entrelaçamento desta história com um capítulo macabro do Brasil: a Ditadura Militar.
Diante da ascensão de discursos cada vez menos democráticos – e impelida pela proteção do futuro dos seus filhos – Carol decide revirar os fragmentos da sua origem através de cartas da sua avó, Inamaya, filmagens de arquivo, áudios e entrevistas para tentar entender o que aconteceu com o seu pai, César Benjamin.
Aos 13 anos, ele foi influenciado pelo irmão mais velho, Cid, se envolveu com movimentos estudantis que visavam o resgate da democracia e enfrentou a dura repressão da polícia militar: foi preso aos 17 e torturado, tendo sofrido o adicional macabro de ter sido colocado em uma solitária por dois anos, onde lutou pela sanidade.
Do lado de fora estava a sua devota mãe, até então uma dona de casa e esposa de militar reformado que lutou com unhas e dentes pelos dois filhos: enquanto Cid foi logo exilado na Argélia, de onde migrou para a Suécia, César permanecia preso e inacessível. As diversas negativas de visitas não a eximiam de ir duas vezes por semana com comida e livros para ele e, embora sofresse represálias verbais, era “respeitada” pelos militares dada a posição do marido (que se absteve da luta).
Entre as cartas trocadas com Marianne Ayres, na época funcionária da Anistia Internacional – sediada na Suíça e com contato intermediado por Cid – Inamaya Benjamin (ou vó Maya, como é carinhosamente chamada na narração) expunha o dilaceramento de uma mãe que queria ter o filho de volta e, sem fraquejar diante do medo, resolveu articular a soltura usando a imprensa internacional como força de pressão.
Carol, a filha de César, não ouviu falar sobre os horrores dos porões da Ditadura ou os traumas por seu pai; nada sobre a conjuntura política, nada sobre seu processo. Na narrativa, ela o descreve “como caixa preta” por seu teor velado, fechado em si. Já da Vó Maya, foram inúmeros casos e anedotas. Como uma divertida passagem que a mostra discursando em 2001 (evento para o qual ninguém a convidou, segundo a própria Carol), Inamaya não perdia a oportunidade de falar sobre os anos de chumbo.
É neste discurso que se costura toda a narrativa do documentário de Benjamin, que é potente tanto no patamar das suas relações familiares como no panorama nacional, dado o modo com que as jornadas de seu pai, avó, tio e mesmo seu avô (o abstinente) representam uma fatia importante da história do país.
Segundo a diretora, foram os silêncios instaurados entre os entes queridos, o sentimento de “é melhor não tocar no assunto pois é desconfortável” que o tornou um tabu e fragilizou os laços entre eles. Por se fechar, César, embora presente, sempre pareceu distante para Carol. A mesma ausência de conversa com a sua mãe Inamaya o levou a desgarrá-la da sua narrativa oficial, ausentar a participação dela na sua soltura – o que parece terrivelmente brutal, quando comparada à ternura com que ela se refere ao filho mais novo nas cartas que endereçou a Marianne.
Esta tentativa de esquecer o passado pois já seria, em teoria, distante, é o que nos leva a repetir a história de maneira infernalmente cíclica. Para Carol Benjamin, é preciso rever os documentos, expor as verdades e construir uma consciência coletiva em torno dos 21 anos de governo autocrático e abusivo para que possamos, enfim, superá-lo. Caso contrário, os silêncios se estenderão e preencherão os espaços, colocando em risco o futuro democrático do país.
“Fico te Devendo uma Carta Sobre o Brasil” é intimista, bem articulado, rico em detalhes e extremamente comovente, em especial pela figura da grande Inamaya, que se lançou à tarefa de soltar o jovem filho e, posteriormente, propôs-se em manter vivos os fatos históricos através da oralidade, a ferramenta que possuía para espalhar conhecimento. Sua persona impactante é valorizada na narrativa, que se desloca em determinado momento dos eventos históricos para debruçar-se sobre seus questionamentos filosóficos e existenciais. Ao se dispor a ouvir a sua voz, o filme também lhe faz uma emocionante e merecida homenagem. Que belo documentário.
*Esta crítica faz parte da cobertura da 25ª edição do Festival É Tudo Verdade*
Ficha Técnica
Ano: 2019
Duração: 88 min
Gênero: documentário
Direção: Carol Benjamin