Por Luciana Ramos
Quando criança, Guillermo Del Toro buscava na arte em suas mais diferentes formas o acolhimento que não encontrava socialmente. Despertou curiosidade sobre o estranho, o disforme e o sobrenatural, investigando temas como beleza e finitude da vida. Para o então garoto, a história de um boneco de madeira que queria ser humano era comovente, marcado por certo empurra-e-puxa de aceitação e rejeição.
Como forma de apoio, posteriormente se configurando em uma espécie de tradição, a sua mãe começou a lhe presentear diferentes versões do boneco. É nessa ligação emocional que reside o comprometimento do diretor com seu mais novo longa, feito em parceria com Mark Gustafson: foram quinze anos de planejamento e execução de uma adaptação mais adulta do conto, embasada historicamente e elaborada com a forma mais complicada da animação, o stop motion.
Ciente dos significados da obra original, eles subvertem os ensinamentos sobre responsabilidade e obediência ao transformar Pinóquio (voz de Gregory Mann) em um menino tão puro que se torna um agente de mudança daqueles que o rodeiam. Isso é bem visível na relação tecida entre ele e Gepetto (voz de David Bradley): o velho, que esculpe uma tora de madeira movido pelo luto e álcool, recusa Pinóquio por este não ser a cópia perfeita de Carlos, seu filho falecido. É a busca dessa aprovação paterna que funciona de motor da aventura. Ao seu lado, está a testemunha da história, Sebastian J. Grilo (voz de Ewan McGregor), um tipo inteligente e leal que habita no seu coração e faz ponderações sobre a jornada.
Outros personagens também tentam adequar o menino de madeira aos seus ideais, usando sua inocência à serviço do regime fascista italiano. Esta talvez seja a dimensão mais inteligente – e devastadora – da adaptação de Del Toro, pois oferece inúmeros questionamentos relevantes também para o cenário contemporâneo. Aos poucos, os afrescos que decoram as vilas são substituídos por propagandas nefastas; a padronização de comportamentos torna-se imperativa e Pinóquio, antes desprezado por ser diferente, mostra-se um ativo para o regime, dada a sua aparente imortalidade. Faz-se com ele o que se faz com as demais crianças: tiram-se brinquedos, moldam-se soldados e jogam-nos para a morte certeira. É tudo triste, desolador…e histórico. Por ter sido escrito em 1940, “Pinóquio”, de Carlo Collodi, inevitavelmente se insere nesse contexto político, e isso torna a inserção da dimensão crítica na narrativa extremamente acertada.
Assim, a nova versão mostra-se complexa, madura, cruel e bela em diferentes níveis. Este último aspecto provém do entendimento paulatinamente obtido pelo protagonista sobre as regras e o sentido da vida e, por isso, a valorização da família e amigos. É um tema recorrente na biografia do diretor, que ajuda a galgar a narrativa a um nível superior.
Como se não bastasse o trabalho cerebral de reinterpretar uma obra tão conhecida, ele também demonstra profundo apuro técnico, tornando a experiência de assistir ao filme um deslumbramento sem fim. Os bonecos que servem como moldes para a animação são extremamente detalhados (da sujeira nos dedos de Gepetto às imperfeições do entalhamento de Pinóquio) e os cenários traduzem visualmente um universo mais realista do que o comum em animações do tipo, reproduzindo espaços italianos com esmero.
Transita-se muito bem entre as escalas das cenas – os planos variam do close à panorâmica – e nota-se uma profusão de movimentos de câmera, que concede riqueza visual à narrativa. É um trabalho belíssimo por apelar ao tom realista e, assim, ajudar na imersão na história e, ao mesmo tempo, dada a riqueza de detalhes, atrair o olhar para a imensidão do trabalho artesanal feito.
“Pinóquio por Guillermo Del Toro” deriva da paixão e visão de um artista, sua dedicação ao meio escolhido e vontade de oferecer algo público algo genuíno e realmente belo. É, sem dúvidas, o melhor filme de animação do ano.
Ficha Técnica
Ano: 2022
Duração: 1h 57 min
Gênero: animação, drama, família
Direção: Guillermo Del Toro, Mark Gustafson
Elenco: Ewan McGregor, David Bradley, Gregory Mann, John Turturro, Cate Blanchett, Finn Wolfhard, Ron Perlman