Por Luciana Ramos

 

Nos anos 70, um crime bárbaro escancarou o machismo e hipocrisia que permeavam a sociedade brasileira. Aos 32 anos, a socialite Ângela Maria Diniz foi assassinada pelo namorado Raul “Doca” Street com quatro tiros à queima-roupa. Os tabloides preocuparam-se em tecer comentários moralistas sobre a vida da mulher; já ele foi recebido com aplausos na frente do tribunal em que tinha ido para responder por seus atos. Um intenso debate se compôs a partir do caso e Ângela se tornou símbolo da luta contra o feminicídio.

O assunto voltou à baila nos últimos anos – primeiro com o sucesso do podcast “Praia dos Ossos” (2020), da Rádio Novelo e, posteriormente com o julgamento do STF sobre o argumento de legítima defesa da honra – então pensar em uma adaptação da vida de Diniz para o cinema era natural. O problema é que, diante do vasto potencial de discussão, o enfoque dado pelo diretor Hugo Prata é, além de fraco, desconfortável.

 A trama suprime boa parte da vida de Ângela (Isis Valverde), focando nos seus meses finais. Divorciada e sem a guarda dos filhos, ela havia se mudado para o Rio de Janeiro, onde namorava o colunista social Ibrahim Sued (Gustavo Machado). Cunhada “pantera de Minas”, destilava charme em festas extravagantes embora, graças ao empenho da atriz Isis Valverde, denote uma qualidade melancólica que a acompanha incessantemente.

Durante um dos eventos, conhece o empresário Raul Street (Gabriel Braga Nunes), marido da socialite Adelita Scarpa (Carolina Manica). Ele a observa com ferocidade e se mostra insistente na forma como a aborda. Ela estranha, mas acaba se encantando por ele e os dois engatam em um caso extraconjugal. A situação evolui até Doca decidir abandonar a família por ela.

Juntos, decidem construir um novo futuro em uma casa idílica no litoral de Búzios. Pouco a pouco, a paixão vai sendo substituída por um clima de posse, ciúmes e confronto. Ângela não aquiesce e segue clamando sua independência – embora passe a esconder alguns fatos do namorado – mas as agressões e abusos escalam continuamente, sem grandes esforços da parte dele em camuflar seu espírito violento.

Ao se tratar de um assunto tão delicado quanto esse, torna-se necessária maior atenção ao modo como ele será mostrado: há de se afirmar a intencionalidade dos atos, a fim de potencializar o debate, sem exagerar na repetição das violências para não cair no risco de soar exploratório. A falta de sutileza leva o filme de Hugo Prata a acabar reforçando o que se propõe a combater, a começar pelo foco escolhido. A narrativa suprime muita coisa da vida de Ângela, tolhendo-a da chance de ser tratada como uma personagem tridimensional. Pelo contrário, ela é descrita de três modos: como a mãe desprovida dos filhos, a amante cheia de energia e a vítima de violência doméstica. Nota-se que todas essas interpretações reduzem o escopo da personagem, estereotipando-a. As agressões são mostradas frontalmente e de maneira repetitiva e Isis Valverde é constantemente retratada usando apenas biquinis – o que, por si só, não denota problema algum, mas, nesse contexto, ajuda a reduzir a complexidade da personagem.

Além disso, os debates que giram em torno da sua jornada, como o machismo que cerca o seu primeiro divórcio ou o clamor por justiça que marca a sua morte, são apresentados em diálogos explicativos ou legendas de créditos. A escolha certamente enfraquece o filme, que também sofre pela montagem errática. O uso reiterado de elipses temporais, combinado à opção do diretor por cenas curtas cria a indesejável sensação de que algo falta à produção. Mais fluidez e dinamismo seriam vitais para a construção de maior engajamento emocional.

Dentre todos esses cortes, o mais intrigante é o do evento que desencadeou a morte de Ângela, o fato de ela supostamente ter flertado com uma turista que visitava Búzios. Em nenhum momento a personagem é apresentada como bissexual e esse fato, se colocado no filme, serviria para escancarar a questão do machismo, somando-o a uma dose de homofobia e objetificação presentes na argumentação de Doca Street no tribunal.  Soma-se a isso o fato de que todas as cenas de agressões são acompanhadas de alguma discussão entre o casal, um tratamento desnecessário já que, convém lembrar, a violência doméstica não precisa ser provocada para acontecer.

Há uma tentativa real de pautar o tema a partir de um olhar feminino, especialmente no modo como mulheres da alta sociedade, como a mãe (Chris Couto) e a amiga (Bianca Bin) de Ângela reproduziam visões patriarcais e, assim, contribuíam para sua manutenção em um relacionamento tóxico. Mais interessante é a amizade desenvolvida aos poucos entre a socialite e sua funcionária, Lili (Alice Carvalho). Ela lhe prestava ajuda e apoio sempre que necessário, mas, sem possibilidade de ação, não conseguiu ser capaz de evitar a catástrofe.  

Os pequenos incômodos vão se avolumando ao longo da projeção e enebriando o tema, suscitando um ponto importante: talvez um olhar feminino em algum ponto central da produção pudesse ter feito diferença. Entre tantos problemas, destacam-se apenas as atuações de Isis Valverde no papel principal, realmente entregue a suprir lacunas narrativas e encher sua personagem de ambivalências e complexidades, e Alice Carvalho, em papel pequeno, mas expressivo.   

Ficha Técnica

Ano: 2023

Duração: 1h 44m

Gênero: biografia, drama, policial

Direção: Hugo Prata

Elenco: Isis Valverde, Alice Carvalho, Gabriel Braga Nunes, Bianca Bin, Gustavo Machado, Chris Couto, Carolina Manica, Emilio Orciollo Netto

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