Por Luciana Ramos

Emily (Phoebe Dynevor) e Luke (Alden Ehreneich) estão bêbados e felizes em uma festa de casamento e, entre amassos confusos, ficam noivos. O anel, no entanto, é deixado sobre a mesa de casa e os dois, embora trabalhem no mesmo lugar, tratam-se com uma frieza delicada no local de trabalho. O pacto de silêncio não é por opção pessoal: há uma norma da empresa que proíbe relacionamentos entre colegas. Além de apaixonados, os dois são ambiciosos e veem no mercado financeiro uma chance real de ascenderem socialmente.

Após um gerente de contas ser demitido – e provocar uma escandalosa saída – todos começam a especular quem pegará o seu lugar. Privadamente, eles indagam que seria hora de Luke ser promovido, mas uma ligação de madrugada aponta uma nova direção. Não só Emily ganha o cargo, como Luke é designado para trabalhar diretamente sob suas ordens. O rapaz faz questão de parecer apoiar a noiva, enfatizando seu orgulho, mas algo no seu modo de falar denuncia que ele não está tão confortável.

Pequenas tensões vão se somando – em casa, ele se afasta fisicamente; no trabalho, parece questionar seus comandos – até um erro grande ser cometido e ameaçar a existência dos dois na empresa. A partir desse ponto, a argumentação da roteirista e diretora Chloe Domont se torna bastante objetiva. De forma cirúrgica, ela usa o relacionamento amoroso – e, em especial o sexo – como propulsor de uma discussão bastante intrigante sobre gênero.

Ao primeiro olhar, “Jogo Justo” parece um suspense erótico dos anos 90, digno de Paul Verhoeven ou Adrian Lyne, certamente com Michael Douglas no papel principal. Em sua maioria, essas obras abordavam uma crise de masculinidade aguda instigada pelo comportamento feminino, sempre vilanizado. Abaixo de uma camada de sexo e desconfiança, estava o incômodo dos homens com a expansão massiva da presença feminina nos locais de trabalho, incluindo cargos de autoridade – culminando na premissa ridícula de “Assédio Sexual” (94), estrelado por Douglas e Demi Moore.

Porém, o filme de Domont, que marca a estreia da diretora no cinema, vai mais fundo na ferida, pois usa expressamente esses ingredientes como meras ferramentas para descredibilizar Emily. Luke menciona, em certa ocasião, sua estranheza com a promoção de cargo na madrugada; em outro momento, critica a sua roupa deliberadamente. Em ambos, sua intenção é mexer com a mente da noiva, minando sua confiança e, quem sabe, sabotando o seu emprego. É uma tática suja e muitíssimo mais vilanesca por ser travestida pela cara de bom moço.

Na outra ponta dessa guerra não declarada, a mulher transita entre afagar as inseguranças do noivo e manter o foco no seu objetivo. Emily sabe ser dura com Luke quando preciso e não aquiesce às suas demandas: “não estou aqui para ser boa”, diz em certo momento; ela está no jogo para ganhar. Em um ambiente volátil e muito pautado, segundo o filme, na intuição “matadora”, Emily tenta se adequar ao clube masculino e misógino, sendo leniente com abusos verbais ou até mesmo embarcando na ideia fetichizada de uma boa comemoração. Ela quer se sentir parte daquele universo e não mede esforços para isso – só não parece se dobrar as vontades de Luke, para o seu espanto.  

Esse tipo de dinâmica depende invariavelmente do núcleo principal de atores que, nesse caso, consegue vender impressões complexas de seus personagens. Phoebe Dynevor guia a narrativa com confiança, expressando a confusão mental de Emily, o misto de sentimentos que a corrói, de maneira eficiente. Já Alden Ehrenreich é um caso interessante. Quando foi apresentado ao público, recebeu enxurradas de críticas por ser um cara aparentemente sem talento, marcado pela versão mais jovem e insossa de Han Solo. Anos depois, mais maduro e focado em projetos independentes, consegue transmitir com firmeza a incoerência do seu personagem, alguém que acredita piamente nas suas boas intenções, recusando-se a acreditar na própria mesquinharia. Sua atuação impulsiona a trama a um patamar bem mais interessante, instigando o público até, em determinados instantes, considerar o seu lado da balança.

Ao final, Domont não parece resistir a ideia de uma conclusão mais apoteótica, abandonando a frieza calculada que marca os dois atos anteriores. Essa decisão, embora conceda um bom embate, parece deslocar o argumento para camadas mais simplistas. Ainda assim, a provocação de “Jogo Justo” segue ativa na mente após o término do filme, revelando o potencial da diretora em abordar assuntos espinhosos.

Ficha Técnica

Ano: 2023

Duração: 1h 53m

Gênero: drama, mistério, suspense

Direção: Chloe Domont

Elenco: Phoebe Dynevor, Alden Ehrenreich, Eddie Marsan, Rich Sommer

Veja Também:

Estômago II - O Poderoso Chef

Por Luciana Ramos   Alguns ingredientes foram determinantes para o sucesso de “Estômago” (2008), um filme de baixo orçamento que...

LEIA MAIS

O Dublê

Por Luciana Ramos   Colt Seavers (Ryan Gosling) é um dublê experiente, que se arrisca nas mais diversas manobras –...

LEIA MAIS

Rivais

Por Luciana Ramos Aos 31 anos, Art Donaldson (Mike Faist) está no topo: além de ter vencido campeonatos importantes, estampa...

LEIA MAIS