Por Luciana Ramos
Em seu longa-metragem de estreia, Gabriela Amaral Almeida concebe um eficiente exercício de gênero, provocador e claustrofóbico. Utilizando uma premissa simples, a potencializa ao trabalhar na dualidade inerente a todo ser humano, a civilidade x seu instinto animalesco.
Nos momentos iniciais, planos de conjunto estabelecem a decadência contida do restaurante de Inácio (Murilo Benicio): as paredes são sóbrias e tão inexpressivas quanto seu rosto, a música ambiente é assumidamente clichê e as cadeiras estão vazias, exceto por um aposentado deprimido (Ernani Moraes) que janta um coelho sozinho.
Tentativas fúteis do dono de conceder um ar de importância ao local (e, em extensão, a si mesmo) são facilmente repelidas pelo pessoal da cozinha, comandada por Djair (Irandhir Santos), e por um casal (Camila Morgado e Jiddu Pinheiro) abonado e arrogante que chega de última hora.Poucos minutos antes de fechar, o lugar é invadido por dois homens armados (Humberto Carrão e Ariclenes Barroso), dispostos a roubar a todos. Porém, Inácio recusa-se a assistir passivamente aos acontecimentos, e suas decisões a partir deste momento põe em jogo o destino dos envolvidos.
Até este ponto de virada, os personagens funcionam como tipos bem definidos, agindo de acordo com seus papéis sociais em aparente harmonia. Esta, no entanto, é constantemente desafiada por pequenos olhares e comentários cortantes, símbolos de um desejo velado pelo embate. Assim, mais do que um acontecimento excepcional, o assalto é inserido como uma oportunidade de libertação da tida cordialidade para a incorporação de uma postura mais instintiva, misto de medo, ousadia, clamor pela sobrevivência e uso da violência como forma de extravasar.
Muito além de uma roupagem simplista, o longa explora as possibilidades de conflito, sejam de cunho social ou movidos por impulsos sexuais. Despindo-se gradualmente das suas máscaras, alguns personagens chegam a incorporar fisicamente posturas animalescas, dando vazão a uma das cenas de sexo mais interessantes dos últimos tempos do cinema brasileiro.
A construção da tensão em uma escala ascendente é reforçada visualmente pelo uso de vermelho (da parede e do sangue), de super closes e uma trilha sonora impactante, escolhas estéticas que referenciam o giallo, gênero admirado pela cineasta. Este, inclusive, justifica uma certa artificialidade na composição da mise-em-scène. Gabriela Amaral Almeida também incorpora o gore habitual desse tipo de filme sem torná-lo um fetiche ao espectador, negando-lhe momentos essenciais, seja pela opção de enquadramento, seja pela elipse temporal.
Dosando os elementos inerentes aos slasher movies, o longa revela-se estimulante por quebrar em pequenas e constantes doses as expectativas criadas pelas situações apresentadas, revelando a hipocrisia e fragilidade de seus personagens. Estes são incorporados com precisão pelo elenco, que opera em harmonia. Destacam-se, nas suas composições, Camila Morgado, Irandhir Santos e, em especial, Murilo Benicio. Transformando-se em frente as câmeras, ele define o tom do filme.
“O Animal Cordial” mostra-se interessante por demonstrar domínio do gênero trabalhado, um exercício narrativo e estético ainda raro no cinema brasileiro. Ademais, ao enaltecer o conflito, o filme ganha relevância adicional: a de capturar muito bem o sentimento atual de um país que se encontra em um momento de polarização, muitas vezes desdobrado em embates – ainda que de caráter ideológico e não físico, como o ocorrido em uma madrugada qualquer no decadente restaurante de Inácio.
Pôster
Ficha Técnica
Ano: 2018
Duração: 98 min
Gênero: suspense
Direção: Gabriela Amaral Almeida
Elenco: Murilo Benicio, Luciana Paes, Camila Morgado, Irandhir Santos, Humberto Carrão, Jiddu Pinheiro
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