Por Luciana Ramos
A arte filtra, reflete e pondera sobre as questões mundanas, estabelecendo uma conexão racional ou emotiva entre público e artista. Neste contexto, a autoralidade surge como uma tatuagem, a expressão de uma visão única que consegue transcender sua peculiaridade – ou permanecer atraente essencialmente por causa dela. No cinema, reflete-se em enquadramentos, cores ou músicas que diferenciam o cineasta da massa, criando uma aura ao seu redor.
Wes Anderson sedimentou sua carreira com esse appeal. Desde o começo, se recusou a curvar para as demandas do mercado e se fez no mercado independente dos anos 90, criando aos poucos conexão profunda com os espectadores. Consequentemente, ganhou respeito do mercado, traduzido no aumento do investimento em seus filmes. Teve o ápice do casamento entre narrativa e estética no belíssimo “Grande Hotel Budapeste”, mas, em seu novo trabalho, parece perdido em uma cacofonia de ideias.
“A Crônica Francesa” é um filme superlativo em orçamento, na riqueza de detalhes, no elenco e na ambição. Inúmeros objetos são introduzidos a cada frame que, invariavelmente, homenageiam algo ou alguém. Porém, a falta de concisão resulta na perda de foco do olhar: sem guia, o espectador fica perdido na sucessão de histórias desequilibradas que ilustram o conteúdo da revista semanal que intitula o filme.
Ao todo, são três contos, um diário de viagem e um obituário, apresentados no formato do periódico a fim de criar um clima jornalístico para a produção. Contudo, a exemplo da estética, as simples histórias são recheadas por reviravoltas ou vírgulas narrativas desnecessárias que tornam a experiência de assistir à obra cansativa.
Esse problema é especialmente notado em “Revisões Para um Manifesto”, segundo conto do filme. Nele, o momento histórico de maio de 1968 é revisitado a partir de uma rebelião estudantil resolvida em um jogo de xadrez. Há referências a Godard – o azul de “O Demônio das Onze Horas”, contraposto ao amarelo signatário de Anderson, que substitui o vermelho. Há a dança, o confronto policial, os piquetes, o visual sessentista de Juliette (Lyna Khoudri), que remete à Nouvelle Vague, o envolvimento de uma jornalista experiente e cética com um jovem idealista, a transição entre frames coloridos e preto e branco, o plot twist, o desfecho…uma miríade de elementos sobrepostos sem hierarquia que falham em criar a desejada conexão emocional; ao contrário, servem para alienar o espectador.
Importante dizer que isso não significa que o novo filme de Anderson seja desprovido de beleza. A riqueza particular do cineasta dispõe-se na poesia de “Uma Obra-Prima Concreta”, que relata o encontro criativo de um presidiário com sua musa carcereira, ou mesmo na homenagem direta a Mèliés em passagens que aludem ao teatro filmado, que marcou a primeira fase do cinema. O problema, conforme explicitado, dispõe-se na excessiva liberdade criativa, por assim dizer, que se traduz na falta de concisão em prol de um fio narrativo bem demarcado.
Em meio a rostos conhecidos, cores e nomes, “A Crônica Francesa” relega o necessário humanismo em prol do exercício estético. É lindíssimo de se ver, mas de uma forma fria e distante. É uma homenagem pouco apaixonada ao jornalismo, pregada por exóticos personagens que não possuem tempo o suficiente para tornarem-se cativantes. Enfim, um curioso caso no mundo da sétima arte: uma obra alienante por ser excessivamente rebuscada.
Ficha Técnica
Ano: 2021
Duração: 1h47min
Gênero: comédia, drama, romance
Direção: Wes Anderson
Elenco: Benicio Del Toro, Léa Seydoux, Tilda Swinton, Adrien Brody, Owen Wilson, Jeffrey Wright, Mathieu Amalric, Frances McDormand, Timothée Chalamet, Bill Murray