Por Luciana Ramos
O documentário “A Disputa do Natal” começa leve, propondo contar a história de Jeremy Morris, um homem que parece amar tanto a data que se empolga na decoração – ao ponto de ser proibido por uma corte judicial de ornar a área externa da sua casa. O acompanhamos selecionando um pinheiro para corte, mostrando a imensidão de objetos guardados em um depósito e discorrendo sobre a ideia de transformar sua varanda em ponto de festividades, com direito a algodão doce, chocolate quente, arrecadação de dinheiro para caridade…e a presença de um camelo, alugada de uma conhecida.
O impacto positivo da sua ideia, em 2014, o levou a buscar uma moradia maior, que pudesse acomodar mais curiosos. Assim, ele e a esposa, Kristy, decidiram mudar-se para West Hayden, um condado fora dos limites distritais no estado do Ohio. A promessa de menos dor de cabeça burocrática foi contraposta com a oposição da associação de moradores ao evento. Sob rígidas normas e regras, o grupo operava para manter a paz e tranquilidade do subúrbio e não via com bons olhos as intenções do casal.
O caldo logo entornou e as promessas de ação judicial voaram entre ambos os lados mesmo antes da mudança dos Morris. Isso não os inibiu – se muito, forneceu ímpeto para Jeremy aumentar ainda mais a proporção da festa – e culminou em um período conturbado de visitações (com direito a ônibus gratuitos), iluminação excessiva e aumento exponencial do barulho. Ao longo de 2015, ele começou a negociar um acordo com a presidente da associação, Jennifer Scott, mas os telefonemas foram usados por Jeremy, que é advogado, para iniciar um processo contra seus vizinhos.
Dirigido por Becky Read, o longa documental acompanha a disputa, ouvindo ambos os lados. Após pouco tempo de projeção, fica claro que o “Sr. Natal” (como gosta de ser chamado) fere não só o bom senso, mas limites éticos na sua busca celebratória. Alega, para tanto, ser discriminado por ser cristão, ignorando que a maioria da comunidade que o cerca partilha sua fé (inclusive, Jennifer é casada com um pastor) e que esculturas plásticas de Papai Noel ou pisca-piscas não são exatamente símbolos de religiosidade.
Seu caráter incisivo é contraposto a pouca disponibilidade dos seus vizinhos em cederem qualquer tipo de evento – afinal, conforme articulam, mudaram-se para a área pela paz. Em meio a mesquinharia de acusações, começam a surgir alguns indícios de comportamentos mais questionáveis por parte de Jeremy, como gravações e fotografias ilegais, a criação de histórias fictícias para desmoralizar o adversário, argumentação jurídica excessiva e, em um grau muito acima dos demais, a ameaça legítima à integridade física dos envolvidos.
Um belo dia, ele atendeu a campainha e viu-se diante de um grupo de origem neonazista que, tendo tomado conhecimento do caso, resolveu dirigir até o local para “fazer a segurança” da celebração – apontando espingardas para os transeuntes, devidamente escorraçados. Além de completamente desproporcional ao confronto inicial, esse incidente serve para ampliar os limites de discussão da narrativa, transformando o filme em um símbolo nefasto da atualidade.
Ao oposto da construção imagética que criou para si, Jeremy não é apenas um entusiasta do Natal que “não sabe quando parar” (palavras de sua esposa), mas alguém que desconhece limites entre público e privado. Ele acredita que o fato de ser americano lhe dá o direito de fazer o que bem entender no seu quintal, mesmo que isso possa invadir literal ou metaforicamente os espaços dos seus vizinhos. Ironicamente, diz querer propagar o espírito de Natal, mas desconhece a fraternidade, a união e o entendimento. Como se não bastasse, acusa quem discorda de suas condutas de “comunista”.
Transformando-se paulatinamente em uma experiência um tanto melancólica, “A Disputa de Natal” sabe usar uma batalha mesquinha como ponto de partida para uma discussão bastante aprofundada sobre a perda do sentido de comunidade em diferentes cantos do mundo. Em geral, pequenos grupos que se posicionam no campo da extrema-direita do espectro político rejeitam a submissão a regras sociais que veem como não favoráveis, aludindo à individualidade como pilar principal de suas existências. No processo, a exemplo dos moradores de West Hayden, direitos são atropelados e pessoas são sujeitas a violências morais e/ou físicas. Um triste retrato de tudo que se opõe verdadeiramente aos valores que simbolizam o Natal.
Ficha Técnica
Ano: 2021
Duração: 1h 31min
Gênero: documentário
Direção: Becky Read