Por Luciana Ramos

Os anos oitenta testemunharam a proliferação de um novo tipo de cinema, que falava abertamente de sexo – levando o tema ao protagonismo – e se propagava livre, mais progressista do que décadas anteriores. Abaixo da primeira camada de sensualidade, que envolvia filmes como “Atração Fatal”, “Instinto Selvagem” e tantos outros, havia a noção de perigo iminente, geralmente por causa das ações de personagens femininas. Não obstante, comumente traçava-se uma relação direta entre sexo e dinheiro, em que um servia de complemento ao outro.

No meio do subgênero conhecido como “suspense erótico”, Adrian Lyne foi rei. Da ousadia de “Flashdance” à polêmica premissa de “Proposta Indecente”, o diretor explorou os conceitos e possibilidades do sexo a partir de diferentes narrativas – algumas essencialmente machistas – até o momento em que o interesse por esse modelo decaiu, ele começou a acumular críticas (como o viés excessivamente realista do seu “Lolita”, de 1997) e decidiu aposentar-se após concluir o excelente “Infidelidade” (2002).

Vinte anos mais tarde, ressurge mais contido (em expectativa do mercado, mas também em estética) com “Águas Profundas”, adaptação cinematográfica do livro de Patricia Highsmith, escritora de clássicos como “O Talentoso Mr. Ripley”. Nele, Lyne usa a história de um casal para instigar o público a reagir e, logo em seguida, questionar suas próprias conclusões, propondo um interessante diálogo sobre o viés machista que atravessa e preenche a sociedade.

Na trama, Vic Van Allen (Ben Affleck) e Melinda Van Allen (Ana de Armas) parecem preencher todos os critérios sociais de sucesso: são bonitos, ricos, possuem um casamento estável com uma filha adorável e navegam pelos dias sem preocupações mundanas. Porém, há algo que incomoda toda a pequena cidade onde habitam: vez após outra, Melinda aparece grudada em algum rapaz jovem, que se torna seu melhor amigo. Os contatos entre eles sempre recaem em uma esfera nebulosa, que implicam na infidelidade dela. O contraponto de suas ações à personalidade afável e contida de Vic leva todos a se sentirem confortáveis para fornecer opiniões a ele, geralmente em tom condenatório.

Eis que, durante uma festa, Vic decide conversar com Joel Das (Brendan Miller), o mais novo amigo da sua esposa, e faz uma revelação bombástica. Sem saber como reagir, o garoto foge do local, levando a mulher a se conectar com outra pessoa, o pianista Charles De Lisle (Jacob Elordi). Toda essa movimentação gera burburinho, mas o círculo de amizade dos Van Allen fica a favor dele quase automaticamente: desmerecem o seu comentário anterior, ignoram qualquer sombra de comportamento imoral ou criminoso e até mesmo justificam suas ações. A única exceção é o escritor Don Wilson (Tracy Letts), que decide investigar Vic por conta própria.

A narrativa desenrola-se em torno desse ciclo de traições, ameaças, dúvidas e, abaixo da superfície, a iminência da violência. Propositalmente, a conduta de Melinda é bem exagerada; sua personagem em nenhum momento se esquiva de fazer o que bem entende e, assim, desconsidera o impacto das suas escolhas. Sempre bêbada, desfila abertamente com seus novos “amigos” e, trabalhada nesse contexto de irresponsabilidade/liberdade (lados opostos do mesmo espectro), instiga a condenação moral do espectador.

Poderia se tratar, portanto, de uma narrativa de cunho bem machista, não fosse a adição de outros elementos que ampliam as possibilidades de olhares sobre os eventos retratados. Conforme já citado, há a leviandade dos amigos dos Van Allen sobre as suspeitas que pairam na cabeça de Vic. Eles não só as desmerecem sem qualquer ponderação, como se mostram disponíveis a esquecer da origem do dinheiro dessa família, propondo a ideia de que as pessoas ricas estão acima da régua moral da sociedade.

Em outra instância, a cadeia entre ação (comportamento de Melinda) e reação (comportamento de Vic) mostra-se flagrantemente desigual e propõe a reavaliação do espectador sobre seu julgamento inicial da dinâmica do casal. Apesar de parecer calmo e paciente, Vic denuncia a todo o tempo que vê sua esposa como um objeto de posse, que deve ser seu a qualquer custo. Ele é meticuloso o suficiente para controlar a narrativa a seu favor, mas covarde por ser incapaz de enfrentar sua esposa.

Ao apresentar sutilmente essas questões, Adrian Lyne preenche uma trama aparentemente simples e concede-lhe profundidade. Em contraponto, a aposta na repetição de situações acaba diluindo a força do filme, que perde ritmo em seu segundo ato. Já o final sofre ao tentar adaptar o plot twist do livro de Patricia Higshsmith, resvalando no clichê. Sem a preterida catarse, “Águas Profundas” permanece em um patamar bem inferior ao de obras anteriores do diretor, mas é sólido o suficiente para entreter e levantar pertinentes reflexões no caminho. Um dos seus maiores trunfos é, sem dúvidas, a atuação da Ana de Armas, que conseguiu encarnar um tipo femme fatale digno dos clássicos noir, oferecendo uma sensualidade perigosa e perturbadora, que leva seu marido a cometer loucuras.

Ficha Técnica

Ano: 2022

Duração: 1h 55 min

Gênero: suspense, drama

Direção: Adrian Lyne

Elenco: Ben Affleck, Ana de Armas, Tracy Letts, Grace Jenkins, Jacob Elordi, Brendan Miller, Lil Rel Howery, Finn Wittrock

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