Por Luciana Ramos

 

A filmografia dos cineastas Marco Dutra e Juliana Rojas demonstra um interesse ávido em explorar as potencialidades de gênero e linguagem. Após a parceria bem-sucedida em “Trabalhar Cansa”, seguiram caminhos solos interessantes, dando vazão ao divertido e gracioso “Sinfonia da Necrópole” (Rojas) e o elaborado e impactante “Silêncio do Céu” (Dutra).

A retomada da parceria culminou na concepção de uma obra lúdica que explora os limites do horror na destilação de um dos mitos mais conhecidos, o do lobisomem. Se “As Boas Maneiras” ultrapassa o tom de fábula ao pincelar temas sociais na trama, também usa-o como fator colaborativo na suspensão de descrença que, por sua vez, suaviza erros narrativos e estéticos.

 

Ao início, o filme parece ávido em usar o enredo de forma metafórica, tecendo comentários sobre diferenças de classe. A trama começa com Ana (Marjorie Estiano), mulher grávida que vive sozinha, contratando Clara (Isabél Zuaa), enfermeira disposta a assumir o trabalho doméstico como forma de se sustentar. A relação apresentada entre a patroa branca e sua auxiliar negra pauta-se essencialmente na vil dinâmica servil, com a exploração do poder de uma sobre a outra e, consequentemente, da abnegação da outra parte.

Logo fica claro para Clara que há algo errado com sua patroa: sons bizarros somam-se a predileção de Ana por comer exclusivamente carne e sujeiras e folhagens que invadem o apartamento misteriosamente. Em uma sequência altamente explicativa, ela conecta os pontos e atrela o comportamento estranho às noites de lua cheia. Finca-se, neste momento, o tema principal, que preenche a narrativa, submetendo possíveis interpretações metafóricas ao papel secundário. Em ascendente suspense, o roteiro se desenvolve, explorando a interação romântica entre as duas mulheres até o ponto de virada, que culminará na segunda parte do filme, dedicada pela devoção da mãe pelo filho.

Desde a maternidade que consome o corpo de Ana (cabendo possível alusão ao “O Bebê de Rosemary) ao trabalho intenso de Clara em proteger Joel (Miguel Lobo) dos elementos que despertam sua essência animalesca, o filme trabalha muito bem o tema a partir da premissa do mal inerente a todo ser humano, que pode ser tolhido pelas “boas maneiras” ou despertado eventualmente por fatores externos. Diante disso, questiona se é de fato possível domar parte da essência humana, subjugá-la a convenções sociais restritivas e, em outra instância, analisando novamente o começo da obra, se estas não envolvem (veladamente) outras formas de perversão.

 

Bem embasada, a narrativa apresenta-se em um involucro de fácil assimilação, mesclando horror e pitadas de comédia em um tom de fábula que insere uma artificialidade à experiência. Esta é trabalhada esteticamente tanto na inserção de uma passagem de animação, que tem função explicativa, à opção de mostrar as personagens em 1/3 do quadro, adicionando importância a ambientação na composição.Ademais, há o uso de matte painting, técnica antiga que resulta numa fachada artificial de São Paulo, adequada ao tom do filme e uma direção de arte que, pelo uso expressivo das cores (em especial o azul e o roxo) e os toques em dourado, explicitam visualmente a intenção dos diretores.

Em contraponto ao trabalho inteligente de tais elementos, há a extensão da narrativa além do ponto necessário de argumentação, algo sentido pela oscilação de ritmo. A fluidez da projeção é também prejudicada por problemas na direção de atores: pautada na interação infantil, a segunda parte do longa sofre com a falta de naturalidade dos atores-mirins em momentos importantes, suavizando seu impacto. Não obstante, há o uso medíocre do CGI, que não consegue convencer nas passagens de transformação.

A extensão dos erros narrativos e estéticos, no entanto, é limitada, não prejudicando a experiência como um todo, em partes pelo próprio tom do filme, que, por se revelar absurdo, permite maior aceitação de eventuais digressões criativas. Em ultima instância, “As Boas  Maneiras” revela-se um interessante trabalho de gênero, que ambiciosa um caminho pouco explorado do cinema brasileiro e o realiza com competência e criatividade.

 

Pôster

 

Ficha Técnica:

Ano: 2018
Duração: 135 min
Gênero: horror, fantasia
Direção: Juliana Rojas, Marco Dutra
Elenco: Marjorie Estiano, Isabél Zuaa, Miguel Lobo

Trailer:

Imagens:

Avaliação do Filme

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