Por Luciana Ramos

 

Quando adolescente, Steve McQueen refugiava-se do mundo na tela da TV. Um dos programas mais marcantes da sua formação foi a série “Widows”, que colocava quatro mulheres como mandantes de elaborados roubos. McQueen, então um jovem de treze anos crescendo em uma Londres descrita por ele como extremamente racista, enxergava-se na experiência daquelas pessoas julgadas pelas suas aparências; desacreditadas, porém, extremamente habilidosas.A sua vida seguiu e, somente mais de trinta anos depois, ele decidiu adaptar a história para os cinemas. Já um diretor conceituado, tendo ganhado o Oscar de Melhor Filme por “12 Anos de Escravidão”, ele se juntou à roteirista Gyllian Flynn (“Garota Exemplar”, “Sharp Objects”) para propor um novo olhar sobre o subgênero heist.

Ainda que contenha diversas passagens de ação e trabalhe com a estrutura básica desse tipo de filme (como o surgimento de inúmeros imprevistos), “As Viúvas” destoa de outras obras por focar-se nos dramas pessoais de três mulheres que, após perderem seus maridos, são forçadas pelo mafioso Jatemme Manning (Daniel Kaluyaa) a pagarem as dívidas deixadas por eles.

 

 

O plot já mostra uma primeira diferença essencial: o roubo que preenche a narrativa do filme não é fruto de ganância ou desejo de se provar mais sagaz que os demais; deriva da necessidade de sobrevivência, tanto da ameaça de violência quanto da precariedade financeira delas. O diretor trabalha a discrepância entre a percepção social e a habilidade das co-protagonistas apresentando-as deliberadamente em invólucros femininos estereotipados, contraste que não só serve como crítica como também potencializa as ações dessas personagens. Enquanto Linda (Michelle Rodriguez) trabalha como costureira em uma loja de vestidos bufantes, Alice (Elizabeth Debicki) ganha a vida como prostituta de luxo, ao passo que Veronica (Viola Davis) é descrita como uma dondoca, dona de um luxuoso apartamento e que vive com o seu pequeno poodle branco nos braços.

Ela, no entanto, choca pela determinação e inteligência com que adapta os planos que seu marido, Harry (Liam Neeson), deixou em um caderno, lembrando as demais, com certa dose de frieza, o contrato estritamente profissional que as une. Na sua intimidade, sofre tanto pela ausência do marido como pela descoberta de atitudes questionáveis dele. Sua maior dor, no entanto, é a perda do filho – e essa, apesar de apenas pontuada, é uma questão essencial do filme.

A maior digressão do filme em relação a outros do gênero é a inserção, por parte de Flynn e McQueen, de afiadas críticas sociais. O filho de Veronica era um jovem negro de família abastada que foi alvejado por um policial racista por estar dirigindo um carro de luxo, um retrato ficcional pungente por refletir a problemática racial e suas implicações em questões como a da segurança pública. Em outro momento, Alice, encarregada de arranjar a munição para o crime, ouve de uma garotinha que “armas são as melhores amigas das mulheres”, uma fala repleta de ironia que explora a complicada relação dos americanos com o porte legal de armamento.

Dentre os comentários políticos e sociais dispersos ao longo da trama, o mais impactante vem de uma sequência em que o político Jack Mulligan (Colin Farrell), após realizar um comício no distrito onde busca se reeleger, entra no carro e começa a conversar com sua assistente (Molly Kunz). O cinismo transparece nas falas que racionalizam suas chances, expõem a sede pelo poder e, nisso, também a sua corrupção – que, por sua vez, revela o quão pouco ele realmente se importa com aquelas pessoas. Os diálogos, apenas, bastariam para expor a imoralidade deste personagem, mas McQueen opta por filmar o trajeto da comunidade popular até a casa do candidato do lado de fora do carro, expondo as discrepâncias de moradias como uma camada adicional de crítica.

Escolhas como estas ocasionam o dilatamento da narrativa como um todo. A ação aparece com veemência no terceiro ato, que explora o crime até então planejado e suas complicações, filmado de maneira bastante dinâmica. Neste momento, apostam-se em reviravoltas sequenciadas que enganam as expectativas construídas e servem de combustível para a tensão, elevada ao máximo.

 

 

Por se pautar nas jornadas das “viúvas” do título, o longa prescinde das atuações das atrizes principais para funcionar, e nisso, a escolha do elenco não poderia ser mais feliz. Se Michelle Rodriguez constrói Alice com um misto de vulnerabilidade e determinação, Elizabeth Debicki realiza um excelente trabalho na demonstração de uma pessoa cansada de ser subjugada por todos ao seu redor, que decide usar a maneira como os outros a percebem a seu favor e, assim, conquistar sua liberdade.

Cynthia Erivo, a quarta integrante do grupo, é uma grata surpresa: Belle, trabalhando como cabelereira e babá – enquanto deixa a filha em casa com outras pessoas – aceita participar do roubo por amor à sua filha, um conceito que, embora deturpado, é completamente compreensível no cenário do filme, muito por conta da entrega da atriz ao papel. O maior destaque fica por conta de Viola Davis, que trabalha as diversas camadas de Veronica com afinco, mostrando a complexidade inerente à toda mulher.

Ainda que satisfaça as expectativas do heist, “As Viúvas” reinventa o subgênero ao trabalhar subjugação e quebra de expectativas em uma trama complexa, que não se desvia de temas espinhosos e usa a narrativa clássica para realizar críticas bem fundamentadas. Estas são embaladas pela inventividade do diretor Steve McQueen, que experimenta com a câmera e explora a cidade de Chicago ao máximo.

 

 Pôster

 

 

 

Ficha Técnica

 

Ano: 2018

Duração: 129 min

Gênero: crime, drama, suspense

Direção: Steve McQueen

Elenco: Viola Davis, Michelle Rodriguez, Elizabeth Debicki, Liam Neeson, Robert Duvall, Colin Farrell

 

Trailer:

 

 

Imagens:

Avaliação do Filme

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