Por Luciana Ramos
Laureado com o prêmio do júri na última edição do Festival de Cannes, “Bacurau”, fruto da parceria entre Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, desafia a passividade do público e o convida à luta. Construído como um faroeste à brasileira, apresenta uma cidade “fora do mapa” que usa a sua invisibilidade como arma de resistência. Sedentos, os moradores dependem da boa ação de alguns para obtenção de elementos básicos, como água e remédios. Isolados, sofrem com o descaso das garantias essenciais, a corrupção e o aproveitamento espetaculoso de figuras políticas patéticas. Unidos, contornam as situações através da perseverança, esta uma característica ativa, que exige afinco dos seus habitantes, unidos pela distribuição de informação uniforme e regular.
O corte de sinal telefônico, essencial para o bom funcionamento da cidade, é o primeiro indício de que o local se encontra em perigo. Atentos, os bacurenses observam sete misteriosas mortes e decidem investigar o fenômeno a fundo. Mas quem são os algozes que os buscam exterminar? A narrativa se esquiva de esclarecer a questão até o terceiro ato e, mesmo quando se lança ao fato, não demonstra preocupação em determinar causas certeiras, já que estas limitariam o seu escopo de fábula social.
A crítica que o filme propõe é mais ampla, fundamentada na contraposição dos moradores da cidade (com todos os seus arquétipos) às figuras dos opressores, significados na escolha das suas nacionalidades, na passagem de ridicularização dos seus seguidores locais, na supressão das suas humanidades em prol do gozo da violência, esta também terceirizada, descontextualizada, reduzida a “ordens de cima”.
A abjeta naturalidade com que o olhar forasteiro classifica os moradores locais como descartáveis não espera a resistência deste povo, mas eles recusam-se a observarem submissos, acolhendo o guerrilheiro como natural protetor. A inserção na trama de Lunga (Silvero Pereira), por sinal, aproxima a narrativa das histórias do cangaço, somando clima, a violência do marginalizado pelo sistema – e sua consequente valorização pela camada mais carente da população – e, mais diretamente, a forma de punição escolhida por ele como elementos essencialmente derivativos das narrativas que compunham o apelo dos bandos nordestinos que assolaram o Brasil no início do século passado.
Sem ater-se à capacidade de fruição de uma narrativa palatável, “Bacurau” provoca o espectador, exigindo a sua participação na construção de significados. Os caixões, os “comprimidos” ou mesmo a voz de Gal Costa, que abre a produção com “Não Identificado”, são significados a partir da interação com outros símbolos, adquirindo, assim, camadas de interpretação que se somam a todo momento em um processo mental que não se esgota com o encerramento da situação apresentada no filme.
É a degustação paulatina do seu sentido que serve de convite ao espectador para reavaliar sua própria submissão. Não obstante, o recado dos créditos finais quanto à relevância cultural da obra a coloca em outra esfera de confronto, a contra o desmonte cultural, este também pautado na passiva absorção de discursos inflamatórios e pouco fundamentados na realidade. Diante do que vivemos, a própria confecção de uma crítica social complexa como “Bacurau” é um ato de resistência.
Ficha Técnica
Ano: 2019
Duração: 131 min
Gênero: Drama, Suspense, Faroeste
Diretor: Juliano Dornelles, Kleber Mendonça Filho
Elenco: Udo Kier, Sônia Braga, Karine Teles, Barbara Colen, Julia Marie Peterson