Por Luciana Ramos

 

“Nunca vi na minha vida esse grau de reação a um jovem cineasta. Sim, há modismos. Eles enlouquecem por um filme e esse geralmente não se sustenta com o tempo porque o modismo morre, mas eu nunca vi isso. É desequilibrado. Não é natural”.

 

O depoimento do cineasta Oliver Stone sobre a ascensão do novato Quentin Tarantino ao panteão de “novo messias do cinema” após o lançamento de “Cães de aluguel” revela muito sobre o impacto dessa obra em Hollywood.

 

Como ingredientes, havia a elaboração de um filme extremamente bem construído com uma pitada de mitologia sobre a falta de formação acadêmica do novo cineasta.

 

Tarantino logo de cara se declarou um geek do cinema, por ter se criado vendo filmes. Sem nunca pisar numa faculdade ou curso técnico, estudou estética e referências através dos longas que via enquanto trabalhava atrás de um balcão na locadora de filmes Video Archives.

 

Começou a escrever roteiros como forma de se sustentar e impulsionar sua carreira de ator. Desiludido com a falta de perspectiva, decidiu rodar sua estória sobre um roubo mal sucedido com U$30.000,00 e uma 16mm. Com a ajuda de Harvey Keitel, transformou “Cães de aluguel” em clássico cult e chacoalhou Hollywood com muito sangue e diálogos politicamente incorretos.

 

De cara, o espectador descobre estar diante de um cineasta de qualidade. A bem humorada cena inicial reúne oito homens em uma mesa discutindo sobre o real significado de “Like a Virgin”, música de Madonna, e a ética em se pagar gorjetas.

 

Momentos depois, os rapazes saem nas ruas com seus ternos pretos e camisas brancas ao som cool de “Little green bag”, de George Baker. Corte para o Mr. Orange (Tim Roth) jorrando sangue, baleado na fuga de um roubo que deu errado.

 

Mr. Brown, Mr. White, Mr. Blonde, Mr. Pink e Mr. Blue andam nas ruas em cena icônica

Mr. Brown, Mr. White, Mr. Blonde, Mr. Pink e Mr. Blue andam nas ruas em cena icônica

 

Enquanto ele convalesce no chão de um armazém, os outros sobreviventes, Mr. White (Harvey Keitel), Mr. Pink (Steve Buscemi) e Mr. Blonde (Michael Madsen), tentam descobrir que os traiu e avisou à polícia. Enquanto remontam a sequência de fatos, são seduzidos pela paranoia e desconfiança, catapultadas pelo arranjo do esquema.

 

Os seis homens foram recrutados por Joe Cabot (Lawrence Tierney) e seu filho Eddie “Legal” (Chris Penn) para assaltarem uma joalheria em busca de diamantes. Eles não se conheciam previamente e tiveram as identidades preservadas com codinomes de cores: Mr. White, Mr. Pink, Mr. Blonde, Mr. Brown, Mr. Blue, Mr. Orange.

 

Assim, com ares de “12 homens e uma sentença”, “Cães de aluguel” monta o seu quebra-cabeça através dos diálogos dos envolvidos, sem mostrar a ação de fato. Intercalam-se às cenas do armazém capítulos que contam em flashback a origem e participação de cada um no plano.

 

Como resultado, tem-se uma trama instigante e bem dosada que referencia outro filme do gênero, “O grande golpe”, de Kubrick, pela temática e construção narrativa.

 

Muito do sucesso da estória deve-se a interação de personalidades marcantemente diferentes, como o Mr. Pink (“o profissional”), Mr. White (durão) e o Mr. Blonde (com ares de psicopata), o que confere humor e acentua o conflito.

 

Esteticamente, esse é o filme mais simples de Tarantino. Passado em poucas locações, privilegia planos fechados à abertos e conta com tímidas movimentações de câmera, sempre inseridas para apresentar algo novo à cena, seja uma informação ou personagem.

 

Da mesma forma, a edição, marca registrada do diretor, é um pouco mais lenta que a dos seus filmes posteriores. Ainda assim, o ritmo da trama é dinâmico, pontuado pelas interferências musicais de “Som dos anos 70 de K-Billy”, que confere aura pop moderna ao longa.

 

Outra das suas características mais marcantes, o uso da violência de forma escrachada, chocou os espectadores mais sensíveis na época do lançamento pela gratuidade. No entanto, ainda que contenha um certo sadismo, a cena em que Mr. Blonde arranca pedacinhos de um policial ao som de “Stuck in the middle with you”, de Stealers Wheel, apenas implica a violência, com a câmera desviada para o teto. Dessa forma, é bem mais leve que os posteriores “Kill Bill- volumes I e II” e “Django livre”, por exemplo, que nem de longe foram tão criticados.

 

"Minha mãe adorou", disse Tarantino sobre cena de tortura

“Minha mãe adorou”, disse Tarantino sobre cena de tortura

 

Sofisticado em sua simplicidade, enigmático e cheio de ação. “Cães de aluguel” surpreende e cativa a todo instante com diálogos afiados e referências pop. Considerado uma das melhores estreias de diretores no cinema, revela o talento de Tarantino em manter o público com os olhos grudados na tela. Um filme genial, que vale a pena ser visto diversas vezes.

 

 

Ficha técnica caes poster


Ano:
 1992

Duração: 99 min

Nacionalidade: EUA

Gênero: crime, drama, ação

Elenco: Harvey Keitel, Tim Roth, Michael Madsen

Diretor: Quentin Tarantino

 

 

Trailer:

 

 

Imagens:

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Avaliação do Filme

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