Por Luciana Ramos
Em 2006, Spike Lee criticou publicamente Clint Eastwood por realizar dois filmes sobre a Segunda Guerra Mundial (“Cartas de Iwo Jima” e “A Conquista da Honra”) e não se dar o trabalho de incluir um único ator negro nos elencos. Suas palavras combativas foram desprezadas após um ciclo rápido de notícia – tratado como a última fofoca de Cannes – e sua investida posterior em preencher esta lacuna, o longa “Milagre em Sta. Anna”, mal viu a luz do projetor.
Como o diretor explicitou tão bem na cena inicial de “Infiltrado na Klan”, o cinema tem um papel decisivo na criação de uma consciência coletiva acerca da história – uma que, ainda embebida de dramatizações e jornadas fictícias, ajuda a compor o imaginário popular sobre temas essenciais, como as guerras lutadas pelos Estados Unidos. Estas sempre contaram com a participação massiva de jovens negros que, atraídos pela perspectiva de ascensão pessoal ou promessa de direitos coletivos (que não se concretizaram), nunca receberam o reconhecimento devido. Nas estátuas ou nos filmes, são sempre heróis brancos carregando fuzis e prometendo manter a chama da liberdade viva. As milhares de vidas negras perdidas em combate não eram lembradas, tampouco eram ouvidos seus clamores.
Em meio a convulsão social da expansão do movimento Black Lives Matter, Lee decide se debruçar sobre conexões históricas para abordar o racismo estrutural no seu país de origem e, ademais, oferecer alguma luz e reconhecimento aos soldados afro-americanos. “Destacamento Blood”, portanto, possui uma grande missão e a cumpre ao unir o pano de fundo histórico, abordado via documental pela inserção de imagens de arquivos e contextualizações, com o plano ficcional, voltado para a reunião de cinco veteranos que viajam ao Vietnã para recolherem os restos mortais do líder do batalhão (Chadwick Boseman) e, se possível, recuperar o ouro que enterraram na floresta tantas décadas antes.
A reunião obviamente reacende lembranças boas e cruéis na mesma intensidade e mexem com o psicológico de cada personagem, deixando claro que nenhum deles, de fato, superou a experiência traumática da guerra. Igualmente, o manto de interação amistosa com os vietnamitas é logo posto à prova e a desconfiança de dois lados expõe uma ferida geopolítica nunca cicatrizada. Em meio a expressões estereotipadas e acusações de assassinatos, observa-se um fato um tanto óbvio mas, nem por isso, menos fundamental: os conflitos entre países são decididos por cúpulas reservadas e que se guiam pelo poder, mas são os cidadãos comuns – sejam eles os da linha de frente das batalhas ou os que perdem familiares, casas e uma perspectiva de futuro – os que carregam as consequências por décadas a fio.
O peso da guerra é abordado a fundo na construção de Paul (Delroy Lindo), cuja desumanização é interpretada pelos amigos como sintoma de um transtorno pós-traumático nunca tratado. Como ele mesmo diz em um momento, os hospitais de veteranos americanos são uma “piada” que servem para dopar e, assim, acalmar os ânimos dos ex-soldados sem de fato se proporem a tratá-los, pois isso seria admitir o custo humano do conflito bélico. Transitando entre momentos de clareza e acusações infundadas ou agressões racistas, ele também exemplifica o eleitor de Donald Trump (referido publicamente por Spike Lee como “agente laranja”, químico corrosivo soltado pelos americanos no solo vietnamita), uma mistura de paranoia e incoerência especialmente perigosa pela propensão à violência.
Na selva, em busca de ossos e ouro, Otis (Clarke Peters), Melvin (Isiah Whitlock Jr.), Eddie (Norm Lewis) e David (Jonathan Meyers), que é filho de Paul decide acompanhá-lo por se preocupar com seu estado mental, discutem lucros, sempre tendo que encarar novos players na potencial divisão das barras, um conflito que marca alguns pontos interessantes: seria o ouro uma reparação histórica? A riqueza validaria os demais danos impostos a estes homens ou pelo menos representaria – com o uso devido – uma faísca de mudanças mais profundas? Por outro lado, é interessante observar a disposição de personagens com discursos diferentes, uns capitalistas, outros altruístas, clamarem seu direito ao dinheiro, interações que não só potencializam o drama como expõem a luta por riqueza e poder que, por si só, sintetiza o mecanismo das guerras.
Os argumentos feitos pelo diretor são contundentes e bem concatenados, mas sofrem com uma montagem prolixa. “Destacamento Blood” é excessivamente longo e só começa a deslanchar depois de uma hora de ação. A contextualização histórica inicial, embora fundamental, é mal distribuída e quase some uma vez que a jornada ficcional deslancha – uma abordagem mais interessante seria a feita na série “Black-ish”, que usa a mesma estratégia de forma mais concisa e coesa.
Não obstante, a tensão das passagens importantes é mal construída, tornando as reviravoltas um tanto previsíveis e condensando-as a cenas que pouco atribuem valor. O choque com trabalhos anteriores de Lee, como o citado “Infiltrado na Klan” e “Faça a Coisa Certa”, marcados pela precisão, indica uma certa pressa na finalização da sua nova obra, lançada com o intuito de respaldar os clamores das lutas antirracistas ao redor do mundo. É uma iniciativa louvável, até porque Spike Lee é uma das pessoas que melhor sabe muito discorrer sobre o tema, mas, do ponto de vista narrativo, acaba pecando na sua extensão. Ainda assim, a força do seu discurso não é prejudica e perdura após a projeção terminar.
Ficha Técnica
Ano: 2020
Duração: 155 min
Gênero: Drama, Guerra
Direção: Spike Lee
Elenco: Delroy Lindo, Veronica Ngo, Jonathan Majors