Por Melissa Vassalli
“—Tem certeza de que o Fervura não existe só na sua imaginação? Enquanto você está fora… eu viria aqui para alimentar um gato imaginário?
—Está dizendo que eu te fiz vir até aqui por um gato imaginário? Isso é engraçado.
—Eu só preciso esquecer que o gato não existe?”
O diálogo aparentemente banal entre Jongsu (Ah-In Yoo) e Haemi (Jong-Seo Yun), logo no início do filme “Em Chamas”, ganha uma forte carga simbólica com o decorrer da narrativa. Os dois, amigos de infância, se reencontram quando adultos. Na cena citada, Jongsu faz uma piada com o fato de ter sido designado a cuidar do gato de Haemi enquanto ela estivesse viajando, e o animal sempre estar escondido.
Mas, se a princípio o foco está na aproximação casual entre eles e no romance que dali poderia surgir, o tom muda quando um terceiro personagem entra na história. Ben (Steven Yeun, o Glenn de “The Walking Dead”), jovem que Haemi conhece durante a viagem, passa a ser seu novo interesse amoroso, e um clima de tensão se instaura entre o trio. Após o desaparecimento de um dos protagonistas, certos conflitos se amplificam. É nesse ponto que a questão da ausência é retomada pela obra. O que é necessário para se determinar a existência de uma pessoa, quando não podemos vê-la?
Para entender os fatos que se sucedem, é importante olhar para o passado dos personagens, o que justifica o tempo que o filme dispende para a apresentação dos mesmos, ainda que algumas situações se tornem redundantes.
Jongsu, escritor de formação que trabalha como entregador, parece ser tímido e sensível, mas é filho de um homem extremamente violento. É a partir do seu ponto de vista que acompanhamos a história, e sua confusão diante de alguns acontecimentos colabora para que tenhamos impressões dúbias em relação ao enredo. Haemi, aspirante a atriz, oscila entre momentos de euforia e melancolia, e é marcada por um histórico de abandono familiar. Já Ben, mesmo simpático, exerce uma relação de poder sobre os demais, principalmente por sua posição financeira. Quando ele expõe alguns hábitos estranhos, seu caráter também passa a ser questionado.
Dirigido pelo sul-coreano Lee Chang-Dong, “Em Chamas” assume, então, um caráter de thriller psicológico, que interpõe de forma eficiente um jogo entre realidade e paranoia, memória e imaginação. Com planos longos e contemplativos, o filme tem um ritmo lento, mas necessário para sua construção. Várias pistas apontam para direções diferentes, todas elas plausíveis. Pouco é verbalizado. Os personagens se confrontam sem que nada seja dito explicitamente. Esse trabalho sutil, tanto do diretor quanto dos atores, merece destaque. Ao final o filme nos guia para uma resolução possível, mas sem acabar totalmente com o suspense criado. Predomina a ausência angustiante de uma voz que nunca foi ouvida, a única que poderia dizer a verdade.
*Essa crítica faz parte da cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Pôster
Ficha Técnica
Ano: 2018
Duração: 148 min
Gênero: suspense
Diretor: Lee Chang-Dong
Elenco: Ah-in Yoo, Jong-seo Yun, Steven Yeun
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