Por Luciana Ramos
Visto por alguns como meio para mero entretenimento, o cinema vez ou outra expressa a força que tem em, através de narrativas, revisitar a história sob um olhar diferente. Quando o faz, mostra-se uma arte superior, pois traz à superfície personalidades que, embora determinantes para o curso da sociedade, permaneceram escondidas por muito tempo. No caso de “Estrelas Além do Tempo”, a afirmação histórica da importância de três mulheres na NASA vem envolvida em uma trama deliciosa.
Na década de 50, movida pela histeria característica da Guerra Fria, a nação americana corria contra o tempo – e os soviéticos – para afirmar-se como pioneira espacial. Em um ambiente dominado por homens brancos, três mulheres negras mostraram-se fundamentais nesse jogo pela capacidade intelectual e sagacidade.
A jornada, obviamente, não era fácil. Não obstante a discriminação por raça, reforçada pela política de segregação, elas enfrentavam preconceito por serem mulheres e ousarem desafiar e redefinir os papeis sociais que lhes cabiam. Desde comentários sobre o uso de saltos à risada masculina ouvida ao proferirem seus trabalhos, o descrédito mostrava-se desencorajador até certo ponto, transfigurando-se em determinação para afirmarem o valor pessoal de cada uma.
Mary Jackson (Janelle Monáe) auxiliava um dos engenheiros na construção e avaliação dos foguetes sem ter o mérito do reconhecimento até que, instigada por ele, decide realizar o seu sonho de se tornar a primeira engenheira afro-americana do país. No entanto, deve lidar com a estupidez jurídica que a impedia de acessar educação superior.
Dorothy Vaughan (Octavia Spencer), por sua vez, realizava o trabalho de coordenadora sem o sê-lo de fato e via-se frustrada pela falta de reconhecimento, até que os primeiros computadores chegam aos prédios da NASA e ela vê na programação uma chance de se destacar.
Coube, no entanto, a Katherine Johnson (Taraji P. Henson) um papel mais decisivo na corrida espacial. Matemática brilhante, foi contratada para fazer os cálculos necessários de decolagem e pouso dos foguetes. Cercada por brancos que não a viam como igual, era obrigada a lidar com o racismo velado no ambiente, que cerceava o seu trabalho e sua confiança.
Para tratar do tema, a trama escolhe um caminho suave, pontuado pela sutileza. O racismo é apresentado de forma sistemática em pequenas coisas – cafeteiras, bebedouros, bibliotecas e banheiros – que, somadas, concedem a real dimensão do problema. Sem partir para o confronto direto na maior parte do arco dramático, o filme caminha em uma mescla de subtextos e alívios cômicos, tornando-se mais palatável. A identificação com os desafios das personagens é obtida ao primeiro instante, sendo reforçada pelos obstáculos da jornada.
O riso – sempre contido, de aprovação pelas atitudes delas – aparece como ferramenta provocadora de reflexão sobre a irracionalidade da discriminação, a nocividade cívica inerente a sua disseminação e, ademais, a quantidade de talentos que permanecem submersos em tal processo.
Cabe ressaltar que o longa em nenhum momento procura saídas fáceis aos percalços apresentados: ao contrário de inúmeras produções sobre a temática afro-americana, aqui não cabe espaço para “salvadores brancos”; cada conquista é obtida pelo talento, cada demanda atendida é fruto do uso da própria voz.
Apesar da boa construção de todos esses elementos, “Estrelas Além do Tempo” não obteria o mesmo resultado não fosse a sintonia das três atrizes principais: Taraji P. Henson, Octavia Spencer e Janelle Monáe. Com atuações de peso, distintas em abordagem mas igualmente talentosas, elas imprimem credibilidade aos papeis embalando-os com ao mesmo tempo vigor e fragilidade.
Convidativo e acolhedor, o filme executa um belo trabalho de reconstituição de uma época, marcada paradoxalmente pelo brilhantismo e ignorância. Embalado em uma ótima trilha sonora de roupagem pop, exalta a existência de três mulheres inteligentíssimas que ficaram por muito tempo nas margens dos livros de história.
Ficha técnica
Ano: 2017
Duração: 127 min
Nacionalidade: EUA
Gênero: drama, biografia
Elenco: Taraji P. Henson, Octavia Spencer, Janelle Monáe, Kevin Costner, Kristen Dunst
Diretor: Theodore Melfi
Trailer:
Imagens: