Por Luciana Ramos

 

Em uma de suas obras-primas, “Boogie Nights”, Paul Thomas Anderson se debruça sobre o caos que permeou os anos 70 a partir de um recorte bem específico: o mercado pornográfico, tido na época como símbolo da liberação sexual. Conforme demonstrou em seu filme, este era bem menos glamourizado do que parecia, tendo submetido muitos de seus atores a experiências abusivas e traumatizantes – vide o depoimento que Linda Lovelace, estrela de “Garganta Profunda”, forneceu posteriormente sobre as cicatrizes emocionais que carregou da sua experiência no setor.

Neste sentido, o longa de 1997, que catapultou o nome de Mark Wahlberg como ator, constrói-se como uma fábula tristonha sobre um período conturbado, onde um tecido social aparentemente progressista camuflava maus comportamentos e intersecções indesejadas com esferas perigosas do submundo. Com o mesmo olhar crítico, o diretor costura seu novo longa, o também excelente “Licorice Pizza”. Desenhando uma trama mais leve e nostálgica na superfície, ele aborda o sexismo através das sucessivas experiências de Alana Kane (Alana Haim), uma jovem perdida que vê na admiração de Gary Valentine (Cooper Hoffman) uma chance de levar sua vida a um patamar mais recompensador.

Aos vinte e poucos anos, ela trabalha em uma empresa responsável por tirar fotos de alunos do ensino médio. Em um dia de tédio, conhece Gary, um garoto de apenas quinze anos que tenta conquistá-la com o auto engrandecimento típico dos atores mirins. Oscilante, Alana decide acompanhá-lo a uma viagem de trabalho em Nova York e lá, pela primeira vez, observa as qualidades dele – em especial, como Gary parece estar em um patamar superior ao seu por ser “famoso”. Ele é tudo que ela não é: decidido, empreendedor, arrogante e galanteador.

Atraída pelo estrelato, Alana decide conviver com Gary e seus amigos adolescentes, virando sua sócia em um negócio de colchões de água. Mesmo considerando suas escolhas de vida estranhas, a jovem encara o rapaz como alguém que pode lhe ajudar a obter independência financeira e, quiçá, uma oportunidade em Hollywood.

Embora amigável, a convivência entre os dois é inevitavelmente permeada pela simbologia machista que caracteriza a época. É interessante notar o modo como ele, mesmo sem querer, a oprime, seja fazendo-a trajar apenas um biquini para atrair clientes à loja, forçá-la a seduzir homens ao telefone ou indicar que ela deveria aceitar “qualquer coisa” para ter um papel em algum filme. Alana não possui uma personalidade submissa e protesta a cada incidente, mas, sabendo das suas limitações diante de um cenário social desfavorável, invariavelmente cede – e se irrita mais com Gary a cada vez.

O fato de os dois serem jovens contribui para uma potencialização do drama, visto que eles não sabem lidar de forma madura com suas frustrações e apostam em pequenas vinganças para causar ciúmes. Neste caminhar, é ela que se põe em perigo real quando decide sair com Jack Holden (Sean Penn, mirando William Holden, famoso ator de “Crepúsculo dos Deuses” e “Rede de Intrigas).

Ainda que as sucessivas humilhações causem fissuras na psique da protagonista, levando-a a buscar outras esferas de poder para transitar (como a política), o longa jamais aposta pesadamente no drama, ao menos não a ponto de cortar a good vibe que o embrulha. Observando mais a fundo, no entanto, é possível notar pinceladas de um contexto mais brutal, como a paranoia (retratada na prisão de Gary) ou a violência de cultos, indicada por um tipo à la Charles Manson. Figura de maneira central na narrativa a crise global do petróleo, na medida em que ela determina o destino do negócio dos jovens e o cruzamento destes com uma persona emblemática da indústria cinematográfica: o instável e violento Jon Peters (Bradley Cooper).

Neste panorama, Hollywood é apresentado como um meio caótico e abusivo, marcado pelos egos desmedidos dos que possuem poder de fato (Peters e Holden) e daqueles que experimentaram um gostinho da fama e, desde então, se colocam em um patamar superior aos demais (Gary). É uma indústria disposta a abocanhar jovens mulheres que sonham em um dia serem atrizes, desprezando-as em seguida. Nas suas interações, Alana ouve inúmeros comentários sobre seu rosto, corpo, religião e idade, sempre de maneira veladamente debochada, sempre visando uma submissão passiva ao molde feminino em vigor.

O diretor contrapõe o tom crítico da sua argumentação teórica com a leveza de um possível romance juvenil. Alana e Gary revelam-se atraentes aos olhos do público por desejarem tomar o controle de suas vidas, arriscando-se para se sentirem livres, bem-sucedidos e felizes. Muito do sucesso dessa identificação vem da química de Cooper Hoffman e Alan Haim, em seus papeis estreantes no cinema. Eles oferecem interpretações aprofundadas, explorando as misturas de sentimentos em cada ação. Fica fácil, portanto, estabelecer uma profunda empatia pelos personagens e torcer para que consigam se encontrar em meio a convulsão social.

Outro elemento que contribui para a experiência fílmica é a trilha sonora. De David Bowie a Paul McCartney, passando por Sonny & Cher, ela acompanha o primoroso trabalho de produção na composição de um clima nostálgico que permeia toda a projeção. Nos momentos de oscilações do roteiro, a exemplo do irregular segundo ato, ajudam a amenizar a falta de foco, fornecendo uma camada extra de apreciação da obra.

Nomeado a partir de uma famosa loja de discos da Califórnia setentista, “Licorice Pizza” oferece um interessante recorte. A partir da experiência feminina, desafia algumas concepções progressistas da década e denuncia como esferas opostas de poder foram igualmente abusivas às mulheres. Mesclando drama e romance, mostra-se palatável o suficiente para um consumo despreocupado, mas também é um prato cheio para os que veem o cinema como ferramenta importante de reflexão. Em suma, é Paul Thomas Anderson em sua melhor forma.   

Ficha Técnica

Ano: 2022

Duração: 2h 13 min

Gênero: drama, comédia, romance

Direção: Paul Thomas Anderson

Elenco: Alana Haim, Cooper Hoffman, Sean Penn, Mary Elizabeth Ellis, Este Haim, Danielle Haim, Tom Waits, Bradley Cooper

Veja Também:

Estômago II - O Poderoso Chef

Por Luciana Ramos   Alguns ingredientes foram determinantes para o sucesso de “Estômago” (2008), um filme de baixo orçamento que...

LEIA MAIS

O Dublê

Por Luciana Ramos   Colt Seavers (Ryan Gosling) é um dublê experiente, que se arrisca nas mais diversas manobras –...

LEIA MAIS

Rivais

Por Luciana Ramos Aos 31 anos, Art Donaldson (Mike Faist) está no topo: além de ter vencido campeonatos importantes, estampa...

LEIA MAIS