Por Luciana Ramos
O novo filme da Pixar, disponibilizado na plataforma de streaming Disney+ para assinantes sem custo adicional, retrata a amizade entre duas criaturas marinhas bem diferentes entre si, mas que compartilham medos e sonhos, atuando como catalisadores de mudança na vida um do outro.
Baseado na experiência de vida do diretor Enrico Casarosa (primeiro não americano a assumir sozinho a direção de um longa animado da empresa), “Luca” soa simples em linhas gerais – ou menos preocupado na construção de complexidade emocional que apele ao público adulto, como “Soul” – mas, por meio de sua metáfora de identidade e aceitação, consegue costurar a nostalgia de uma típica história de aprendizado à sentimentos mais potentes que concedem à produção várias camadas interpretativas.
A história acompanha uma criatura marinha acostumada com uma rotina pacata no fundo do oceano, mas que não consegue deter a curiosidade de explorar o que há acima da superfície para desespero dos controladores pais. Ao conhecer Alberto, ele cria coragem e amplia seus horizontes, descobrindo uma série de novidades no caminho: o granulado da praia, a liberdade metafórica da Vespa, a sensação da gravidade, a alegria de poder dividir momentos com um amigo e, em particular, o fato de poder se transformar em humano quando está seco.
Luca sofre a repressão de Daniela e Lorenzo, mas não entende a argumentação dos seus pais – mais interessados em protegê-lo das agruras do mundo – e, por isso, foge com Alberto para a vila de Portorosso, onde conhecem Guilia e se unem a ela em um campeonato de nado, bicicleta e ingestão de pasta. Em comum, há o sentimento de inadequação, exacerbado pelas constantes piadas e importunações de Enrico, campeão recordista do evento e bully de primeira. Porém, o que a simpática garota não sabe é que seus novos amigos escondem suas reais identidades e, por isso, são incapazes de relaxar.
Por mais que sejam satisfatórias, as aventuras dos dois são preenchidas por angústia e desconfiança e, por isso, eles se veem forçados a sempre checar os arredores a fim de reafirmarem uma falsa sensação de segurança. Até o ingênuo Luca rapidamente descobre que seres como ele são malquistos na comunidade, muito por conta de lendas e anedotas falsas sobre uma suposta periculosidade que apenas esconde (muito mal) um preconceito arraigado e irracional.
Conforme Massimo, o pai de Guilia, mostra ao longo de sua jornada, mesmo quem é criado com pensamentos tacanhos pode enxergar a humanidade do outro e evoluir para um lugar de acolhimento. Dessa forma, “Luca” opta por apontar as diferenças entre os personagens aquáticos e terrenos apenas para pontuar a futilidade de tais discussões e propor um olhar mais carinhoso com o próximo. Ao construir tais paralelos, pode ser interpretado como uma elaborada e sensível metáfora à experiência LGBTQIA+ e, portanto, uma das produções mais sofisticadas da Pixar.
Não obstante, ao se voltar para a amizade entre Luca e Alberto, preocupa-se em apresentar divergências entre seus comportamentos e visões de mundo e, com isso, o longa argumenta que os laços nem sempre são para sempre: na verdade, pessoas podem ser presenças perenes nas vidas das outras, mas possuírem impacto profundo nas suas jornadas.
Nesse sentido, Guilia atua tanto como elemento de tensão (por se posicionar entre os dois, despertando os ciúmes de Alberto) quanto como alívio cômico, trazendo referências italianas em suas recorrentes interjeições espantadas. O último atributo é compartilhado pelos pais de Luca que, disfarçados, molham crianças em busca do filho sumido e acabam arrancando boas risadas.
As homenagens à cultura italiana espalham-se pelos cantos da cidade, fazendo-se presentes em pôsteres (“A Princesa e o Plebeu” e “A Doce Vida”, por exemplo), no tradicional gelato ou no barco com o curioso nome “Foccacia”. É como se as memórias do diretor, nascido em uma vila pesqueira como a representada no longa, preenchessem a tela de uma encantadora nostalgia.
A direção de arte, por sua vez, faz um primoroso trabalho, apostando no contraponto entre os tons terrosos de Portorosso, presentes não só nas desgastadas paredes como também nas roupas dos personagens, com os azuis e verdes predominantes do mar e os seres que lá habitam. O requinte se dá pelos detalhes, como as diferenças de texturas da água a partir de sua proximidade com a praia – das bolhas e espumas da beirada à escuridão opressora do fundo do oceano.
Unindo a primazia técnica característica das produções Pixar/Disney e uma narrativa direta, porém sensível e emocionante, “Luca” surpreende positivamente e aponta para a construção de obras mais diversas temática e culturalmente, um sinal de que a empresa entendeu a direção apontada por uma geração mais interessada em narrativas mais representativas. Um belo acerto.
Ficha Técnica
Ano: 2021
Duração: 95 min
Gênero: animação, aventura, comédia
Direção: Enrico Casarosa
Elenco de dubladores: Jacob Tremblay, Jack Dylan Grazer, Emma Berman, Saverio Raimondo, Maya Rudolph, Marco Barricelli, Jim Gaffigan