Por Luciana Ramos

 

O olhar sensível e poético de Naomi Kavase volta-se para a questão da maternidade em “Mães de Verdade”, explorando o tema a partir de lados opostos do espectro: um casal que adota e a mãe biológica do pequeno Asato (Reo Sato).

A narrativa parte da quebra da aparente harmonia familiar quando o menino é acusado de ter empurrado um colega, comportamento visto como uma transgressão. O afastamento compulsório decorrente de tal julgamento social, que logo é contestado, aponta para uma rigidez conservadora de normas e costumes, reafirmada pelo roteiro em diferentes dimensões e momentos.

Sentindo que falhou no seu papel de mãe diante do incidente, Sakoto (Hiromi Nagasaku) relega-se às lembranças do longo e extenuante processo de adoção. O ponto de partida é a infertilidade de Kiyokazu (Arata Iura), diagnóstico que o leva a sugerir o divórcio, visto que a condição genética é interpretada também como um fracasso, dessa vez do seu papel masculino.

Ainda que rechaçada, a proposta paira sob a cabeça do casal até eles conseguirem adotar por meio da agência Baby Baton, sendo dois aspectos importantes neste ponto da jornada: primeiramente, há a necessidade de acolhimento de um bebê, de modo que se mantenha a aparência de uma família biológica (embora seja encorajada contar a verdade aos filhos desde tenra idade); não obstante, há a exigência de que a mulher largue o emprego para assumir “plenamente” suas funções de mãe.

Os fragmentos narrativos, quando unidos, solidificam a ideia de um país conservador que trata a maternidade não como um desejo ou vocação, mas como um protocolo que deve ser cumprido. Embasando o ideário arcaico estão conceitos como a honra, que possuem significados diferentes para homens e mulheres – se para eles é a virilidade, para elas representa a submissão a uma série de protocolos, como o sexo depois do casamento e a abdicação do trabalho em prol da vida caseira.

Neste contexto, a gravidez inesperada de Hiraki Katakura (Aju Makita) é encarada como uma mácula no nome da sua família. A fim de preservar a honra (digam-se, as aparências), os seus pais resolvem mandá-la para longe, de modo que fique acolhida até ter o filho e dispô-lo para doação. Embora sofra com tal punição e o abandono do seu primeiro amor, a adolescente conhece outras garotas em mesma situação e ensaia a formação de uma rede de apoio, apontando uma eventual saída para sua condição. A dureza das restrições sociais que a afligem, no entanto, reforçam continuamente a sua marginalização, minando-a de qualquer perspectiva de um futuro melhor.

Após explorar os dois lados de um processo delicado e recheado de regras e cobranças, Naomi Kavase se propõe a colocá-los em embate direto no terceiro ato, o que torna o filme mais dinâmico e provocador. Sob seu olhar, a maternidade é debatida sem fechamento de questões; o seu interesse é a proposição de uma reflexão ampla e cuidadosa. Nisso, nota-se o cuidado em apontar o amor que Sakoto e Hiraki sentem pela mesma criança e o laço que cada uma desenvolve com ela: a proteção leonina de uma em oposição à necessidade da outra manter uma relação com o filho que carregou na barriga através de conexões simbólicas.

Infelizmente, o filme opta por um tratamento não-linear e, por vezes, diversionista, que acaba atrapalhando na sua absorção. Ao todo, “Mães de Verdade” parece mais longo e menos amarrado do que trabalhos anteriores de Kavase. Em contraponto, há o belíssimo trabalho de fotografia, mesclando a estaticidade dos planos na representação do casal com a fluidez e presença viva da câmera nas sequências de Hiraki, em especial nos seus momentos de maior felicidade. Mesmo com problemas, o longa que compõe o catálogo da 44ª edição da Mostra Internacional de Cinema de SP revela-se imprescindível por saber abordar a maternidade de forma plural e multifacetada, ajudando a compor um delicado panorama do tema dentro de uma sociedade tão rígida quanto a japonesa.  

 

*Essa crítica faz parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de SP

Ficha Técnica

Ano: 2020

Duração: 140 min

Gênero: drama

Direção: Naomi Kavase

Elenco: Hiromi Nagasaku, Arata Iura, Aju Makita, Reo Sato

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