Por Luciana Ramos
O bizarro e inesperado falecimento de Otis Sr. (Keith Davis) submeteu a empresa Haywood Hollywood Horses a uma fragilidade operacional ainda maior. Juntos, seus filhos OJ (Daniel Kaluuya) e Emerald (Keke Palmer) transitam por sets de filmagens contando sobre suas conexões com a história do entretenimento americano e a paixão pelo treinamento em cavalos, mas são facilmente rechaçados, com desculpas que variam sobre custos e o perigo em se tentar conter um animal selvagem.
Sem alternativas, OJ decide vender parte dos seus animais ao rancho mais próximo, comandado por um ex-ator mirim que incorpora símbolos do velho oeste americano em um complexo voltado para a família. De lá, são ouvidos zumbidos e observadas movimentações estranhas nas nuvens, que colocam os irmãos sob suspeita de que há algo muito errado acontecendo. Em uma determinada noite, o temor torna-se realidade: do céu, um aparato oval transita parecendo atacar seres à volta. Em retorno, regurgita materiais insólitos como chaves, pregos e parafusos – exatamente o que alvejou Otis Sr.
A esperada preocupação com a própria sobrevivência é logo suplantada por outra, movida a dinheiro e fama: a captação em vídeo do OVNI. Para isso, contam com a ajuda de Angel (Brando Perea), um funcionário de uma loja de tecnologia curioso e capaz de formular novas teorias por minuto. Além deles, o diretor Antlers Holst (Michael Wincott) mostra-se interessado em gravar o fenômeno e, assim, alçar um outro nível de fama.
Por meio de observação intensa, o grupo descobre que o objeto a cortar o céu não é uma nave, mas um ser faminto que usa pessoas e animais como sacrifícios sob o manto de um conjunto específico de regras. Assim, uma vez entendidas, elas podem ser dobradas pelas ações de seus opositores, mas, obviamente, neste cenário qualquer deslize pode ser fatal.
À primeira vista, “Não! Não Olhe” é mais simples do que os filmes anteriores de Jordan Peele. Tendo se formado artisticamente com esquetes cômicos, ele devotou-se ao horror desde cedo e preferiu explorar as linguagens do gênero em filmes afiados, que tecem comentários incisivos e sarcásticos sobre temas como o racismo – conforme visto em “Corra!” e “Nós”. No primeiro, há a construção de um clima desconfortável, coroado por uma sequência metafórica que permeia a experiência do protagonista na casa de campo dos pais da namorada. Já no seu segundo filme, as proporções imagéticas ganham escopo e, entre os labirintos de grandiosidade, costura-se uma trama que se aprofunda nos questionamentos sobre a dualidade humana.
Embora extremamente bem filmado, seu novo filme é propositalmente mais desnudo, apostando em construções arquitetônicas restritas – e captando os espaços em vazio através de grandes planos, típicos do western, uma das estéticas escolhidas para homenagem. Narrativamente, a história estabelece pontos de observação, contrastes entre os personagens, regramento claro e transita sem sair dessa seara. Analisando a obra a partir desse âmbito, ela se mostra extremamente satisfatória: sabe combinar muito bem a ficção científica com pitacos de comédia, escalar as tensões de modo a engajar o espectador ao máximo e conceder, por meio de um longo terceiro ato, um clímax empolgante e coerente.
Porém, a obra de Jordan Peele não se esgota na primeira camada, e a observação de alguns comentários sociais inseridos durante a trama conduzem-na a um patamar mais elevado, a começar pela anedota de Gordy, o macaco-ator. A cena que abre o filme indica um animal coberto de sangue, transitando por um set de filmagem que guarda corpos resvalados no chão. Até então dócil, o animal reagiu instintivamente a um gatilho e matou todos aqueles à sua volta – com exceção do pequeno Jupe, que se escondeu por medo.
O incidente o marcou profundamente – é notável seu nível de desconforto ao descrever a história – mas, sem outras perspectivas artísticas, Jupe (Steven Yeun) se convenceu de que abrir um parque temático envolvendo um show com caráter sacrificatório seria o caminho de volta à adulação midiática. De certa forma reinvestindo no seu trauma para ganhar dinheiro, o rapaz coloca outro valor acima do da sua sobrevivência por acreditar ser capaz de obter benefícios palpáveis. Ele não é o único a agir nesse sentido: de fato, todos que se dispõem a continuar no local “amaldiçoado” pela presença de um ser alienígena esperam obter algum tipo de ganho com isso.
Tendo em vista o tipo de motivação aparentemente torpe e a punição (ou falta de) a cada um dos personagens, estabelece-se um importante paralelo com Hollywood, que permeará todas as relações estabelecidas nesse filme. Assim como o animal, a indústria de entretenimento americana é, para Jordan Peele, um ser que captura pessoas talentosas, as mastiga e regurgita os restos. Foi um pouco o que aconteceu com Jupe (ou mesmo com Gordy) mas ele, uma vez moldado no sistema, se vê incapaz de superar a falsa adoração, buscando-a a qualquer custo. O mesmo ocorre com o repórter do TMZ e, em outra instância, o diretor Antlers: há uma necessidade quase bárbara de criação do espetáculo a qualquer custo.
Já a motivação dos irmãos OJ e Emerald pode ser analisada sob outro aspecto: o de reparação. Como ela explana em um discurso descolado durante um trabalho (do qual são demitidos porque o cavalo dá muito trabalho), sua família descende de Alistair Haywood, jockey negro que posou para os experimentos de Edward Muybridge, estudioso das fotografias em movimento e essencial para o desenvolvimento do cinema. Essa série, no entanto, leva o nome de “Cavalo em Movimento”, completamente ignorando o homem negro nas imagens.
O claro apagamento da sua importância histórica é indicativo de uma indústria que marginaliza pessoas de cor, argumentação reiterada ao longo do filme. Ao invés de serem tratados com deferência, os Haywood são colocados como prestadores de serviço de segundo plano e perdem oportunidades constantemente, tendo que se desfazer de seu patrimônio para tentar manter a empresa – e o nome da família. Assim, a opção por traçar um audacioso plano e obter provas irrefutáveis da existência de um alien dialoga com essa vontade de reafirmação e glória, chegando ao ápice na construção imagética da sequência final, em que OJ aparece trajando um moletom do filme “Escorpião Rei” (onde a equipe substituiu cavalos por camelos) em cima de um pomposo animal em terreno aberto. Ele é a figura heroica dessa história.
A teia de símbolos que se forma entre as estruturas simples de roteiro é enaltecida pela direção inteligente, que alterna enquadramentos fundamentais do western e do terror. A direção de arte acerta ao apostar na apresentação gradual de seu monstro, despindo-se das formas ovais e rígidas para construir uma magnífica estrutura fluida e abrangente.
Ao centro, dispõe-se o excelente elenco, com destaque para Daniel Kaluuya e Keke Palmer. Figurinha carimbada dos filmes de Peele, ele sabe dar o tom certo à cada cena, enaltecendo o horror através de suas reações e, em momentos chave, quebrando a tensão ao demonstrar certa covardia de seu personagem, essencial para sua jornada. O tom cômico é mais amplamente explorado pela ótima Palmer, que oferece uma leveza muito bem-vinda à narrativa com um jeito próprio e diferente. O contraposto entre os dois funciona muito bem e ajuda na construção de um ritmo fluido que permeia a produção.
De filme a filme, Jordan Peele vem construindo uma cinematografia impecável, oferecendo originalidade e pertinência nos seus argumentos. O apuro estético, somado à capacidade de inserir sarcasmo em momentos propícios torna-o um diretor único em um escopo tão grande de massificação. Embora conceitualmente simples, “Não! Não Olhe!” suscita debates interessantes, sem nunca perder de vista o necessário engajamento para o embarque catártico na aventura proposta.
Ficha Técnica
Ano: 2022
Duração: 2h 10 min
Gênero: horror, mistério, ficção científica, suspense
Direção: Jordan Peele
Elenco: Daniel Kaluuya, Keke Palmer, Brandon Perea, Michael Wincott, Steven Yeun, Keith David