Por Luciana Ramos
Ao explorar os limites da linguagem cinematográfica, um diretor pode apelar para o potencial apoteótico da sétima arte ou, como Sidney Lumet soube trabalhar tão bem, buscar o seu nível máximo de contenção, o elemento essencial que seja capaz de cumprir as demandas de entretenimento.
De “12 Homens e Uma Sentença” a “Enterrado Vivo”, é longa a tradição de obras confinadas a um espaço, que invariavelmente apelam para a interação com elementos externos não mostrados a fim de cativar a atenção do espectador. Assim é o excelente “Culpa”, do dinamarquês Gustav Möller. Centrada na experiência de um policial em julgamento relegado a anteder chamadas de emergência, a trama indica um potencial crime e brinca com as percepções, erros e acertos do personagem para construir sua colcha narrativa. A falta de mobilidade é compensada pelo foco no rosto do ator Jakob Cedergren, responsável por manter a tensão dramática em meio aos inúmeros plots twists.
Refinado em sua simplicidade, o filme fez sucesso o suficiente para despertar o interesse de Hollywood em refilmá-lo. Não havia urgência ou mesmo relevância para tal, mas fato é que, apenas dois anos depois, chega à Netflix um longa derivado de nome parecido, encabeçado pelo estelar Jake Gyllenhaal e dirigido por Antoine Fuqua, responsável por obras como “Dia de Treinamento” e “O Protetor”.
Considerando a similaridade entre elas, deve-se emitir um alerta: não assista as duas obras seguidamente. A experiência provoca um enfado quase insuperável. Não se trata de falta de qualidade – na verdade, os dois filmes são separadamente ótimos – mas sim de uma penetrante sensação de déjà vu, propalada por diálogos e situações idênticas. Apesar da grande promoção do nome de Nic Pizzolato (“True Detective”) no roteiro, não é possível identificar o seu toque pessoal ou, ao menos, uma adequação à realidade estadunidense: a maior parte das cenas é copiada ipsis litteri.
Ensaia-se, no entanto, um comentário social em torno da profissão de Joe Baylor (Jake Gyllenhaal), consonante às críticas sobre condutas de policiais brancos no país, mas este é trabalhado de maneira espaçada e superficial, incapaz de conceder à refilmagem um ar autoral. Contrapõe-se a esta falha um trabalho primoroso de câmera, que explora bem os poucos ambientes em sua completude, dando dinamismo às cenas e enfatizando o suspense com o uso de sombras bem demarcadas.
Cabe a observação de que, embora genérico, e, exatamente por sugar o roteiro da versão dinamarquesa, “O Culpado” é um ótimo suspense, que consegue reter a atenção do espectador – precisamente até a cena final, quando a necessidade de anunciar em letras garrafais uma jornada de redenção já desenhada mostra-se irresistível. A trama caminha em uma projeção exponencial de incidentes influenciados pelo modo como Joe os enxerga, criando maiores dificuldades à família que deseja ajudar. Com isso, o conceito de verdade é trabalhado no filme através de um filtro grosso de subjetividade por si só deturpadora e arriscada, deixando uma boa reflexão ao seu término.
As oscilações emocionais são trabalhadas com firmeza por Gyllenhaal, que entrega uma miríade de emoções a cada interação ao telefone e, ao interpretar o mesmo papel que Cedergren com mais raiva, violência e vulnerabilidade, engrandece a obra americana.
Diante de todas as ponderações críticas, deixo dois caminhos de análise. Ao passo que “Culpa” permanece como um filme de nicho por dificuldades de linguagem (familiaridade do público) e distribuição, “O Culpado” já se mostrou um sucesso em poucos dias de exibição, demonstrando mais uma vez o poder do streaming e, assim, botando mais lenha na fogueira sobre discussões acerca de refilmagens: é melhor um filme excelente e pouco assistido ou um remake decente e largamente enaltecido por espectadores ao redor do mundo? Por outro lado, não é hora de superar preconceitos e se dedicar a prestigiar obras fora do eixo americano, que claramente tanto têm a oferecer, ao invés de esperar pela versão pasteurizada?
Ficha Técnica
Ano: 2021
Duração: 90 min
Gênero: crime, drama, suspense
Direção: Antoine Fuqua
Elenco: Jake Gyllenhaal, Christina Vidal, Peter Saarsgard, Riley Keough