Por Luciana Ramos
As discussões contemporâneas desembocam invariavelmente em uma divisão que parece reger a nova ordem: diante da denúncia pública de um crime, cerca de metade dos receptores da notícia reagem com a devida indignação e amparo, enquanto os demais parecem indiferentes à fatos e/ou estudos. Estes aproveitam a oportunidade para reafirmarem suas convicções (em geral, medievais) na medida em que desafiam a veracidade do relato.
Embora muito acirrado com a propagação das redes sociais, esse movimento não é novo e, tampouco, isento da conjuntura política e social onde tais indivíduos vivem. É o que mostra “O Último Duelo”, novo filme de Ridley Scott, que flerta com os conceitos de verdade e justiça ao recontar um fato histórico. Seu ponto de partida é o livro homônimo de Eric Jager (2004), que destrincha sobre o último julgamento por combate autorizado pelo Parlamento de Paris.
A trama se passa no século XIV, durante a Guerra dos Cem Anos, quando os escudeiros Jean de Carrouges (Matt Damon) e Jacques Le Gris (Adam Driver) duelaram após o primeiro levar a sério a denúncia de estupro feita por Margueritte de Carrouges (Jodie Comer). Pautado na propriedade – já um espelho nefasto da posição da mulher na época – o crime fere diretamente a honra de Jean, mas sua opção pelo combate físico põe em risco a vida do casal: na época, entendia-se que Deus iluminaria os caminhos de quem estava falando a verdade, conduzindo-o invariavelmente à vitória. Nesta configuração, caso o marido perdesse, ela seria enforcada por falso testemunho.
A adoção deste pretenso pêndulo jurídico – embora embebido de clamor religioso – já é, por si só, problemática, mas Ridley propõe-se a colocar o dedo mais fundo na ferida. Opta, para tanto, na divisão narrativa em três pedaços, mostrando a perspectiva de cada um dos envolvidos sobre o evento.
Inicia-se com a versão de Jean, que se enxerga como um homem honrado e que foi constantemente traído por seu antigo amigo Le Gris. Além de ter parte do seu dote perdido, ele se vê preterido em inúmeras ocasiões por Pierre d’Alençon (Ben Affleck), primo do Rei que semeia privilégios em troca de lealdade. Assim, observa a precariedade de sua posição (financeira e de status) como fruto de maquinações políticas. Não obstante, culpa Margueritte, a quem enxerga como uma apaixonada esposa, de não ser capaz de conceber um herdeiro.
Jacques, por sua vez, vê-se como um escudeiro leal que ajudou Carrouges diversas vezes, colocando panos quentes em suas trapalhadas ao reportá-las para figuras de autoridade. É esse dito ar conciliador que, na sua visão, o concede um lugar especial na Corte e, por isso, enxerga os ganhos usurpados do antigo companheiro de batalhas como recompensas indispensáveis pelo bom trabalho. Ele acha seu ar libertino irresistível e, assim, constrói uma narrativa onde Margueritte, louca de paixão, o deixou entrar em sua propriedade de bom grado, e apenas proferiu “protestos costumeiros” durante o ato sexual por ser uma “dama” – desnecessário pontuar quão problemática é essa fala.
Eis que, depois de mais de uma hora de projeção, têm-se enfim a versão da própria mulher, enfatizada pelo diretor como a verdadeira. Neste relato, são desmentidas algumas peças essenciais anteriores (por exemplo, a paixão dela pelo marido é trocada por conveniência, submissão às regras sociais e posterior ressentimento) que incrementam muito a narrativa, galgando-a a um patamar bem mais interessante do que o até então apresentado. Ao sair da sombra dos homens que a rodeiam, a personagem ganha profundidade e talentos que, para seu pesar, somente podem florescer na ausência física do marido.
Após o crime, ela se vê mais uma vez submetida às vontades de Jean, implorando-lhe para que vá adiante com as acusações a fim de ter alguma chance de justiça. A escolha arrogante do marido pelo duelo, no entanto, atrela o seu destino ao dele, um ponto central da trama por enfatizar as limitações femininas em um contexto em que ela é a real vítima.
Os contornos discrepantes são colocados de maneira em geral sutil, exigindo uma participação ativa do público na avaliação da veracidade de cada pequeno pedaço do quebra-cabeça. Usos de linguagem irônica ou metafórica também são incorporados e, embora o filme seja bem palatável, essa escolha acaba expondo um grande problema estrutural do roteiro. Obviamente, há de se esperar que o espectador interessado nesse tipo de obra seja minimante esclarecido; porém, não sendo o caso, não há nada na produção que o conduza para um patamar mais elucidado sobre o tema. Em outras palavras, nesta circunstância o dito cujo machista e arcaico irá absorver as (errôneas) falas que “justificam” o crime e desprezar o restante; ao final, nada terá refletido.
Ademais, há uma outra questão que independe do engajamento do público: a estruturação do roteiro. Dois terços da projeção são relegadas às (limitadas) percepções de Jean e Jacques e, nesse campo, são detalhados os eventos principais que, uma vez mostrados, são revisitados de maneira picotada posteriormente apenas para enfatizar apenas as discrepâncias de visões. Assim, cenas importantes são suprimidas em parte ou totalidade da versão de Margueritte, que parece ter ficado com o ônus de galgar entre passagens pesarosas e lidar com as consequências de sua denúncia – onde, mais uma vez, é conduzida ao papel de coadjuvante de sua própria história. Neste roteiro ao estilo “Rashomon”, nota-se um desequilíbrio insuperável entre as partes masculinas do roteiro (escritas por Matt Damon e Ben Affleck) e a feminina (escrita por Nicole Holofcener).
Não obstante, há a caricatural construção do personagem de Affleck e outras pequenas incongruências visuais, vide os cortes de cabelos ridículos ostentados por grande parte do elenco, que servem como pontos de desconexão emocional. Em contrabalanço, tem-se a belíssima fotografia, pautada exclusivamente em focos de luz diegéticos (como velas e janelas) e a excelência de Scott na direção, mais de perto averiguada na sequência do esperado combate.
Ao final, seria incorreto afirmar que “O Último Duelo” é desprezível enquanto ideia ou mesmo entretenimento, mas a falta de calibração em pontos essenciais impede o filme de se mostrar tão sagaz quanto a sua premissa.
Ficha Técnica
Ano: 2021
Duração: 2h32 min
Gênero: ação, drama, história
Direção: Ridley Scott
Elenco: Matt Damon, Adam Driver, Jodie Comer, Harriet Walter, Alex Lawther, Nathaniel Parker