Por Luciana Ramos

Por meio do seu trabalho cinematográfico, o diretor Nabil Ayouch expõe as feridas e contradições da sociedade marroquina, chamando a atenção para o sofrimento humano gerado pelo conservadorismo que, por sua vez, desbanca em ignorância e negação das individualidades. Sua própria trajetória enquanto cineasta sofreu represálias, visto que uma de suas obras anteriores foi censurada por seu conteúdo contestador. Com “Primavera em Casablanca”, Ayouch recorre ao poder do cinema mais uma vez para, por meio de cinco histórias sutilmente interligadas, compor um panorama do seu país.

Logo ao início, o espectador acompanha a devoção do professor Abdallah (Amine Ennaji), focado em não só ensinar conceitos geográficos às crianças, mas instigar a curiosidade e imaginação de cada uma delas. Seus planos são brutalmente interrompidos com a chegada de um agente da reforma educacional em vigor, que submete o conteúdo programático ao ensino do árabe. Essa determinação é completamente incoerente com aquele vilarejo, que pratica o dialeto berbere no dia-a-dia. A consequência direta desse embate é a alienação daqueles estudantes que, perdidos, tentam repetir palavras árabes sem saber ao certo os seus significados.

 

 

Esse tipo de cegueira institucional e política será determinante para o destino dos personagens, subjugados por não poderem, de fato, expressarem-se livremente. É o caso de Salima (Maryam Touzani) que usa seu corpo para desafiar os olhares transeuntes. Estes, sem vergonha, julgam-na e insultam-na baseando-se na sua aparência. São os encontros com a idosa Yto (Nezha Tebbai) que oferecem um pouco de luz à vida de Salima, sufocada pelas expectativas sociais no desempenho do seu papel de mulher, compartilhadas pelo seu marido machista e controlador.

Em outra instância, a adolescente Inès (Dounia Binebine) sofre do mesmo: em um misto de desprezo e apego às tradições, ela nega suas inclinações amorosas e sexuais para sujeitar-se à objetificação, única saída que vê. Ao inserir as interações com pessoas de outra classe (menos abastada que a sua), o diretor também expõe, através dessa personagem, um conflito social latente.

O jovem Hakim (Abdelilah Rachid), por sua vez, consegue, parcialmente, realizar seu desejo de tocar rock, atingindo um modesto sucesso na cidade onde vive. Este, no entanto, é obliterado pela negativa da sua família (à exceção da irmã menor) em aceitar sua vocação, reforçado pelos comentários maldosos que ouve nas ruas. Seu canto de “We Are the Champions” em momento determinante da trama é o perfeito instrumento de catarse, um casamento entre a beleza da letra com a brutalidade das imagens – violentas tanto pelo que mostram à distancia quanto pelo que omitem.

Por fim, Joe (Arieh Worthalter) parece desfrutar de uma boa vida, comandando o restaurante que seu pai fundou. Porém, as preocupações do velho em ter o direito de ser enterrado com dignidade seguindo a religião judaica em solo marroquino ecoam no filho quando este conhece uma prostituta árabe.

 

 

Todos os personagens, ao seu modo, têm uma parcela de suas existências tolhidas por configuração política pautada na religião que ignora a humanidade de seus cidadãos, uma vez que os nivela a uma expectativa social que não se propõe a enxergar as complexidades e particularidades de cada indivíduo.

Paulatinamente, as subtramas caminham ao encontro da revolta popular que foi denominada de Primavera Árabe, uma expressão do clamor por mudanças – que, embora dificilmente atendam às expectativas religiosas, sexuais e de gênero descritas na trama, já representam um ponto de partida para o desenvolvimento de uma sociedade mais tolerante.

Focando no talento do seu elenco, Ayouch consegue atingir seu ambicioso propósito artístico, elencando argumentações temáticas com eficiência. Um dos exemplos é o uso das narrações em off com os rostos de seus personagens que, sérios, exprimem o sofrimento por terem sido silenciados.

Relevante e coerente, o longa emociona pela criação de sequências fortes, ao mesmo tempo poéticas e brutais, que sintetizam o pensamento de seu diretor. Infelizmente, a reiteração desse instrumento acaba causando uma certa saturação, sensação reforçada por uma montagem que nem sempre privilegia seus personagens.

No entanto, oscilações de ritmo decorrentes de escolhas equivocadas sobre o melhor modo de contar essas histórias não são capazes de retirar suas forças argumentativas. Em seu todo, “Primavera em Casablanca” revela, ao mesmo tempo, apelo emocional e racional pautados na criação poderosa de um amplo panorama da sociedade marroquina, muito distante da idealização do clássico “Casablanca” que o garçom Ilyas (Abdellah Didane) tanto gosta.

 

Pôster:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ficha Técnica

 

Ano: 2018

Duração: 119 min

Gênero: drama

Direção: Nabil Ayouch

Elenco: Maryam Touzani, Amine Ennaji, Arieh Worthalter, Abdelillah Rachid, Dounia Binebine

 

Trailer:

 

 

Imagens:

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