Por Luciana Ramos

 

De tempos em tempos, testemunhamos algum ator hollywoodiano explorar os limites da profissão ao se lançar na difícil tarefa de encarnar alguém muito longe da sua real persona, processo geralmente ajudado por quilos de maquiagem pesada. Dentre os nomes comumente associados a este tipo de tarefa, estão o de Christian Bale e Nicole Kidman.

Com uma carreira extremamente bem-sucedida, a australiana, cunhada um tanto jocosamente de “atriz séria” pela imprensa americana, flutua entre escolhas diversas, que incluem tanto a transformação física (Virginia Woolf, em “As Horas”) como a encarnação de personagens estranhos e/ou pouco relacionáveis, como a Charlotte de “Obsessão”.

Seu mais novo trabalho, “O Peso do Passado”, combina estes dois elementos. Uma câmera fechada, focada nos seus olhos, nos apresenta Erin Bell (Nicole Kidman), detetive com o rosto marcado pelos traumas do passado. A vermelhidão e o inchaço indicam o seu problema com o álcool. Cambaleante, ela exala mensagens paradoxais: a da clara fragilidade de alguém que há muito se perdeu nos próprios demônios e a de uma pessoa determinada, que não pode ser parada.

Seu ímpeto por justiça provém da indicação de que Silas (Toby Kebbell), o perigoso chefe de uma gangue, está de volta à Los Angeles, mais de dez anos depois de escapar de uma intricada armadilha policial, pautada na infiltração de dois agentes, Erin e Chris (Sebastian Stan), no cotidiano dos criminosos. Pouco experientes, os dois cumpriram o disfarce com afinco, submetendo-se ao uso de drogas e participando do planejamento de um roubo.

A interação dos personagens com o ambiente criminoso, apresentado como um lugar sujo e decadente, é complementada por cenas que revelam o envolvimento romântico dos dois, o que levou a complicações não planejadas e, fatalmente, determinou as circunstâncias da vida da protagonista no presente.

O filme de Karyn Kusama passeia com fluidez entre os dois tempos narrativos, sabendo ligar os pontos necessários para justificar o comportamento de Erin mais de uma década depois. Esquivando-se da facilidade de compor uma personagem com que o público possa se identificar, o roteiro de Phill Hay e Matt Manfredi aposta na complexidade do trauma, do desejo de vingança e dos arrependimentos. Em outras palavras, não é necessário gostar dela, mas compreender seus motivos.

A determinação a leva a uma caçada por todos os membros da gangue, a começar por Toby (Gil Lawson), um decrépito ex-presidiário nos últimos dias de vida. A interação entre os dois é certamente desagradável, o que serve para contextualizar o quão longe ela é capaz de ir para cumprir seus objetivos, além de conferir um começo forte ao longa.

Em contraponto, é inserida a subtrama da sua filha adolescente (Jedy Pettyjohn), envolvida com um cara que claramente não tem muito a oferecer. Suas tentativas pouco eloquentes de conversa fortalecem o discurso do peso que a sua infeliz experiência teve em todo o resto da sua vida e, ademais, oferece mais uma camada à sua psique.

Explorando ao máximo o talento de Kidman, completamente entregue na personagem, a diretora oferece inúmeros planos de seu rosto castigado que, escondido por pesada maquiagem, está quase irreconhecível. Somam-se enquadramentos bem abertos em áreas pouco habitadas, como acostamentos e ruas desertas, onde o corpo trôpego da atriz chama a atenção.

A escolha de focar na intensidade da personagem é acertada e se revela o melhor do filme. Este, porém, é bastante prejudicado por algumas escolhas narrativas infelizes, que, unidas, minam a credibilidade da obra. Se passagens questionáveis, como o depósito de uma grande soma de dinheiro em uma lixeira – lugar de fácil acesso aos policiais – já levanta as sobrancelhas dos espectadores mais atentos, outras, como uma cena particular referente as notas marcadas, quebram parte da imersão necessária ao longa.

O maior problema, no entanto, é concernente a todo o pano de fundo, a operação onde Erin e Chris se infiltraram. Silas é pintado como um homem extremamente perigoso, mas, fora uma cena específica que indica isso de maneira sutil, essa característica não é bem explorada. De fato, o final da produção deixa uma pergunta incomoda na cabeça: qual foi o sentido desta ação policial, considerando que os bandidos mais parecem um bando de viciados que roubam lugares com alto grau de amadorismo para sustentarem seus modos de vida?

Não obstante, o envolvimento romântico dos agentes não é bem fundamentado o suficiente para justificar as suas ações posteriores. A sensação é a de que faltaram mais cenas em flashback que contextualizassem melhor os fatos. A fragilidade do roteiro é ainda exposta pelo grau de facilidade com que Erin avança em sua empreitada vingativa. Claro que ela enfrenta obstáculos, mas estes nunca conferem o senso de urgência e tensão necessários para, mais uma vez, fundamentar a periculosidade de Silas e seu grupo.

Sem isso, o apelo de “O Peso do Passado” desmorona e o filme reduz-se a apreciação do trabalho primoroso de Nicole Kidman, uma das atrizes mais dedicadas da atualidade. Uma pena que todo o seu talento não seja amparado por um material de melhor qualidade.

Ficha Técnica

Ano: 2018

Duração:

Gênero: drama, policial

Diretor: Karyn Kusama

Elenco: Nicole Kidman, Sebastian Stan, Tatiana Maslany, Bradley Whitford, Toby Kebbell

Trailer:

Imagens:

Avaliação do Filme

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