Por Thaís Luz
O passado tem charmes irresistíveis e isso faz com que filmes de época sejam explorados até o desgaste do gênero em um punhado de fórmulas previsíveis. Espera-se uma produção refinada, que dê conta dos detalhes históricos e da grandeza dos personagens verídicos, que possuem narrativas capazes de sobreviver ao passar dos anos. Porém, apoiadas na premissa do encantamento estético, muitas obras carecem de potência para marcar seu lugar na arte cinematográfica, resumindo-se a suscitar comentários sobre a beleza dos figurinos ou da cenografia.
Felizmente, alguns filmes conseguem pegar as expectativas do público e levá-las para um caminho diferente do óbvio, arrematando o espectador nessa boa quebra de expectativa. “Entardecer” encaixa-se neste segundo grupo, escapando pela tangente ao trabalhar bem com aquilo que se dispõe, tornando elementos que poderiam ser batidos em potentes, ao passo que é despretensioso em sua mensagem e bem-sucedido em escolhas estéticas em que outros falharam.
O longa abre com a jovem órfã Írisz (Juli Jakab) em frente a um espelho experimentando chapéus arrojados, com plumas e toda sorte de rococós que distinguiam as cabeças das damas da alta sociedade. O véu que cobre seus olhos é levantado pela funcionária do local e, nesse momento, a garota informa que houve um equívoco: ela não é uma cliente, mas alguém que está atrás de um trabalho – a loja, de fato, pertenceu no passado aos pais que ela mal conheceu. O tratamento da atendente muda conforme o equilíbrio social se inverte, o seu tom vai de aveludado para ríspido. Tudo parece colocado para contar a história de Cinderela, em que o caminho da personagem será o de tentar reclamar o status social perdido, revelando a realeza que então se esconde, contando com um pano de fundo histórico que oferece empecilhos na forma de personagens vaidosos e poderosos que não a querem por perto. Mas não é sobre isso que o filme se trata.
Irisz é habilidosa na construção de chapéus, mas é recusada pelo atual dono da loja. Isso não a faz desistir e ela retorna ao estabelecimento inúmeras vezes. Em uma das rejeições, ela é questionada por que não vai atrás das outras inúmeras chapelarias da cidade, ao que dá a resposta “nenhuma delas tem o meu nome”. Ao persistir na busca pela sua identidade, ela embarca em um mistério que envolve não só sua família e o estabelecimento, mas todo o contingente político da Budapeste de 1910.
O filme assume um tom de suspense conforme a protagonista vai revelando uma determinação espantosa em buscar pistas misteriosas do passado e presente, ignorando qualquer ordem ou advertência que recebe para não se meter naquilo que não foi chamada. Ela acaba chegando a situações de extrema vulnerabilidade, mas nem as violências que enfrenta são suficientes para pará-la; aos poucos, a sua busca incessante deixa de ser por uma identidade familiar e passa a representar uma fome por respostas para a inquietação que sente com seu papel de mulher na sociedade.
A escolha do elenco faz toda a diferença porque é possível achar significado na busca de Írisz através dos olhos de Juli Jakab. Eles transparecem a dúvida interna entre se contentar com o que está disponível, preservando sua integridade física e sua segurança, ou ir além, atrás do oculto. A personagem pouco fala e não estabelece nenhuma relação ao longo do filme, mas é revelada pelos longos planos em que pondera suas decisões, exaltados pela luz laranja de um possível sol batendo no seu rosto – tudo que precisamos saber para estabelecer um engajamento emocional.
A câmera, na maior parte do tempo, segue-a enquadrando o dorso. Essa é uma escolha estética que não funciona sempre, já que marginaliza as informações do espaço e recusa a potencialidade da face. Um exemplo da má utilização do recurso é o uso no longa “Mãe!”, de Darren Aronofsky. A repetição com que é empregado resulta na impressão de um olhar tímido e acanhado da sua personagem principal, tornando-o pouco revelador. Já em “Entardecer”, a técnica não só é bem utilizada, como é o dispositivo que leva o espectador ao centro nervoso do filme. É continuamente utilizada para que a perseverança da personagem nos leve até lugares e informações que não queremos ir.
A perspectiva e altura dos enquadramentos, amarrando o olhar em uma corda invisível, avançam a trama ao seguir Írisz por um caminho obscuro, rodeado dos perigos e barulhos que assombram a perambulação de qualquer mulher na realidade e torna seu ir e vir vulnerável, seja hoje, seja no século XX, em qualquer tempo. Além dos olhos que recaem sobre ela, o fora de quadro é de barulhos que pegam o espectador de surpresa e trazem para a narrativa uma constante tensão. A câmera trêmula confere a impressão de que a qualquer momento ela pode ser engolida pela multidão. Somente naquela altura é possível acessar esse olhar exclusivamente feminino.
Assistir ao filme de László Nemes é, eventualmente, se encontrar em um estado de aflição. A personagem pode não escapar das consequências de suas decisões. O desejo é de pedir que ela pare porque é mais confortável fechar os olhos, mas Írisz, irredutível, segue descobrindo as mazelas que a rodeiam, fazendo com que o filme movimente o espectador em direção a uma reflexão importante: fingir que não existe um lado podre na sociedade não faz com que ele deixe de existir, apenas faz com que o indivíduo ignorante não experimente o incômodo necessário para mudanças.
O filme termina com um acender interno da personagem – uma luz diferente da que perseguia no início – e uma câmera que não mais a segue, mas vai de encontro a ela. Talvez a única relação que Írisz tenha tido ao longo do filme todo é esse encontro com o olhar do espectador. “Entardecer” é um convite à coragem, uma mensagem contundente contra o ato de fechar os olhos ao que se esconde por trás de rendas e cristais, nos dando um gostinho de como seria se nós mesmos enfrentássemos a realidade de olhos abertos.
Ficha Técnica
Ano: 2018
Duração: 142 min
Gênero: Drama
Diretora: László Nemes
Elenco: Evelin Dobos, Susanne Wuest, Juli Jakab, Björn Freiberg
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