Por Luciana Ramos
O tímido Reginald Dwight (Taron Egerton) toca teclado na lateral do palco, enquanto acompanha atentamente o astro do rock Little Richard (Carl Spencer) levar a plateia à loucura com seu gingado. Quando perguntado por este se virar uma estrela da música faz parte dos seus planos, Reggie desmerece sua personalidade e origem, ouvindo em resposta o ácido conselho: “você tem que matar quem é para se tornar quem quer ser”.
Este é o ponto principal da biografia de Elton John, focada no processo de construção de uma persona artística em detrimento da sua essência até chegar ao ponto de não reconhecimento. Exatamente por isso, o filme começa com um Elton fantasiado de demônio andando vigorosamente por um corredor: o destino, no entanto, não é um palco, mas a clínica de reabilitação – a primeira quebra de expectativa do longa, sinal da ousadia que permeia a produção até o final.
Afastando-se do molde superficial das biografias de músicos, “Rocketman” decide imergir no âmago de seu personagem principal, usando sua obra como instrumento e, assim, aproximando-se das características do cinema musical. Grande parte das músicas apresentadas é acompanhada por grande elenco de apoio e dançarinos que efetuam sequências complicadas de dança, produzindo um espetáculo condizente ao da carreira da Elton que, atrás de um piano, sempre soube atrair e reter a atenção do público.
Como na tradição dos musicais, muitas canções são inseridas diegeticamente nas cenas e traduzem o estado de espírito do protagonista. Algumas, como “I Want Love”, são compartilhadas com outros personagens, construindo um arcabouço emocional que contextualiza as relações interpessoais e o impacto de cada uma delas na formação identitária do cantor. Neste sentido, a construção da sua faceta pública é atrelada a carências afetivas profundas, fruto do abandono do pai (Steven Mackintosh) e da brutalidade disfarçada de descaso da sua mãe (Bryce Dallas Howard). O sonho de ser um artista é aportado pela sua avó (Gemma Jones), única figura do círculo familiar descrita no filme com um olhar afetivo.
Diferentemente de outras biografias, que apostam na construção de seus personagens por um viés fantasioso que expõe um brilhantismo quase sobrenatural (caso de “Chaplin” e tantos outros), a obra de Dexter Fletcher mostra-se mais relevante por se dispor a destrinchar o processo criativo, inserindo sequências de composição, de harmonização e discussão comercial, fatores laborais que também são essenciais à arte. O talento de Elton ao piano, o seu carisma e sua capacidade vocal ficam muito bem estabelecidos ao longo do filme, mas este cresce exponencialmente ao se preocupar no caráter artesanal do trabalho de um cantor.
Quanto a isso, um dos fatores mais positivos da obra consiste na apresentação de Bernie Taupin (Jamie Bell), não só como amigo de longa data, mas importante player na construção da carreira de John – de fato, um trunfo, considerando a dificuldade em se conceder crédito no mundo do entretenimento.
O relacionamento entre os dois também se mostra importante por exemplificar a única constante afetiva na vida do protagonista que, tomado pelo vício em drogas ou pela fama, nem sempre o tratou da melhor maneira. O vínculo entre os dois foi incapaz de suprir o sentimento de solidão de Elton e, cada vez mais mascarado pelas suas espalhafatosas e maravilhosas fantasias, ele foi renegando as suas carências, escondendo dentro de si o “tímido Reggie” em um processo autodestrutivo que dura anos e desemboca na sua busca por reabilitação. Conforme conta ao grupo de apoio sobre si, o artista paulatinamente despe-se do figurino e se expõe, ao mesmo tempo encarando suas questões e conectando-se consigo.
É um intricado processo narrativo, suavizado pelo espetáculo das passagens musicais, mas que não se exime de mergulhar nas piores características de seu personagem quando preciso. Para este jogo dar certo, é imprescindível o mergulho absoluto do ator que o interpreta – e, felizmente, o trabalho de Taron Egerton é primoroso. Completamente absorto, ele expõe uma miríade se sensações a cada cena, montando um ser complexo que deixa escapar sua vulnerabilidade mesmo quando não deseja. Não obstante, o filme não só se beneficia do seu timing cômico como também da sua capacidade vocal, que se aproxima muito à de Elton John.
Contando com um portfólio imenso e variável, a trilha sonora ajuda na consolidação de uma unidade temática, mesclando, para isso, pequenas notas de canções apresentadas, como “Goodbye Yellow Brick Road”, com outras, como “Can You Feel the Love Tonight”, não presentes diretamente na trama, mas lindamente inseridas em momentos importantes. Outro importantíssimo destaque é o figurino, que simboliza o que há de mais irreverente e especial no cantor e é, por si só, um grande atrativo estético.
Mais do que um bom filme, “Rocketman” é um atestado do que pode ser obtido quando a liberdade criativa entra em jogo – mérito de Elton John, que se negou a retratar sua vida em moldes narrativos rasos e conservadores. É impossível, diante deste debate, evitar a comparação com “Bohemian Rhapsody”, que caminhou em sentido diametralmente oposto. Ambos tiveram o envolvimento de Fletcher (contratado para terminar as filmagens da cinebiografia do Queen após demissão de Bryan Singer), mas a sua qualidade artística torna-se evidente e impactante somente quando aliada ao comprometimento com a veracidade histórica – ainda que muito beneficiada dos toques fantasiosos, que ao mesmo tempo suavizam a trama e favorecem a imersão. Assim, propondo-se a realizar um mergulho verdadeiro no seu personagem, “Rocketman” afasta-se da miríade de biografias medianas e, com muita música boa, se lança a um patamar infinitamente superior.
Ficha Técnica
Ano: 2019
Duração: 121 min
Gênero: Biografia, Drama, Musical
Diretor: Dexter Fletcher
Elenco: Taron Egerton, Jamie Bell, Richard Madden, Bryce Dallas Howard, Gemma Jones, Steven Mackintosh