Por Luciana Ramos

O que somos sem a memória? Quando desprovidos do sentido de uma origem clara, o senso de pertencimento torna-se fluido e inquietante, desencadeando um processo mental de afirmação da identidade através da tentativa de reconstituição de pequenos fragmentos vividos, porém esquecidos. É o que nos mostra “Deslembro”, um retrato sensível sobre o impacto da Ditadura Militar nas famílias brasileiras.

A história é contada através do olhar da adolescente Joana (Jeanne Boudier), que entra em crise por ter que deixar a França (país onde cresceu e, por isso, tem seu vínculo mais forte) para voltar ao Brasil quando é concedida à sua mãe a Anistia. A sua resistência ao processo de mudança vai além do fato de não ter, em sua vida cotidiana, referências do Rio de Janeiro: o seu pai foi preso no país por lutar pela democracia e encontra-se, desde então, desaparecido.

Sobre ele, ela só tem acesso a pequenos flashes de informação, provindos das memórias embaralhadas de uma criança que não compreendia a gravidade da situação em que se encontrava. Anos depois, o que restou foi a sensação de culpa, como se, de alguma forma, tivesse tido algum papel na captura dele – um sentimento cruel demais que, embora socialmente injustificável, serve para demonstrar a ferida aberta e latente deixada por um período tão brutal.

Ao investir na narrativa pelo olhar da garota, o filme envolve um assunto complexo em um invólucro mais simples e palatável, uma abordagem extremamente feliz, dado o caráter intimista concedido pela sua jornada, permeada pela inadequação comum à idade (exacerbada pela sua desconexão com os costumes locais), a experiência do primeiro amor e o relacionamento conflitante com sua mãe e seu padrasto, Luis (Julián Marras). A ausência dele no ambiente familiar, por sua vez, explora outros pontos essenciais: primeiro, reafirma-se a trabalhosa e incansável luta pela democracia e, de forma adjacente, explora a fragmentação de uma família que não consegue se solidificar enquanto o ambiente de insegurança permear.

A diretora mistura novas impressões às memórias de Joana através de uma câmera muito presente, posicionada na mão, trêmula, por vezes oferecendo imagens embaçadas, tradução visual do estado de confusão da protagonista.

O longa oferece organicidade ao traduzir a diversidade de origens desta família pelo uso de diferentes idiomas, que mudam de maneira fluida e servem para afirmar como cada personagem melhor se expõe. Joana, por exemplo, ao começo usa majoritariamente o francês, uma forma de negação ao Brasil que, como diz, “tortura e mata”, mas adota paulatinamente o português à medida em que convive mais com a avó paterna, por quem desenvolve afeição.

A interação entre as duas personagens é, de fato, o melhor que o filme oferece pela delicadeza e amorosidade com que se desenvolve. Destaca-se, neste sentido, a maravilhosa atuação de Eliane Giardini, testemunho do seu talento. A novata Jeanne Boudier, por sua vez, ainda que oscile em naturalidade, demonstra habilidade técnica nas cenas mais intensas, sendo uma boa surpresa. Sara Antunes, que interpreta a sua mãe, por outro lado, não consegue imprimir densidade em sua personagem, sendo o elo mais fraco da produção.

Esta ainda sofre pela indesejada repetição de temas que, uma vez definidos, não avançam além da apresentação inicial, o que resulta na indesejável sensação de que o longa tem menos a dizer do que gostaria. Ainda assim, “Deslembro” vale a pena pela abordagem original e delicada de uma época macabra da história brasileira, uma lembrança pertinente do sofrimento infligido a tantos indivíduos e, ademais, um panorama de um país que, sem liberdade, tende a fragmentação e sem memória, à repetição.

Ficha Técnica

Ano: 2019

Duração: 96 min

Gênero: drama

Direção: Flávia Castro

Elenco: Jeanne Boudier, Sara Antunes, Eliane Giardini, Jesuíta Barbosa

Trailer:

Imagens:

Avaliação do Filme

Veja Também:

Rivais

Por Luciana Ramos Aos 31 anos, Art Donaldson (Mike Faist) está no topo: além de ter vencido campeonatos importantes, estampa...

LEIA MAIS

Guerra Civil

Por Luciana Ramos   No fascinante e incômodo “Guerra Civil”, Alex Garland compõe uma distopia bastante palpável, delineada nos extremos...

LEIA MAIS

A Paixão Segundo G.H.

Por Luciana Ramos   Publicado em 1964, “A Paixão Segundo G.H.” foi há muito considerado um livro inadaptável, dado o...

LEIA MAIS