Por Marina Lordelo
Andrucha Waddington é um realizador brasileiro que tem construído sua carreira com filmes sobre músicos e personalidades do país, com destaque para “Tempo Rei” (1996) com o retorno de Gilberto Gil à sua terra natal. Ele também dirigiu “Eu, Tu, Eles” (2000) e, em 2018, “Chacrinha: O Velho Guerreiro”. Tem uma parceria com Fernanda Torres desde “Gêmeas” (1999), baseado na obra de Nelson Rodrigues; juntos também fizeram “Casa de Areia” (2005), este com a participação de Fernanda Montenegro. Este preâmbulo serve para justificar a mais recente parceria com as atrizes – Torres agora como roteirista em “O Juízo”, filme de terror brasileiro que estreia no apagar das luzes de 2019. Fernanda Torres já havia escrito três longas, com destaque para “Redentor” (2004), e em seu mais novo trabalho se aventura pelo gênero de forma mais evidente, certamente aproveitando o momento que o cinema brasileiro tem acolhido melhor essas produções.
O filme conta a história transgeracional de Guto (Felipe Camargo), neto de um fazendeiro escravocrata que delata a fuga de um escravo com sua filha. O decorrente assassinato destes marca a memória dessa família permanentemente. O filme tenta entrelaçar o peso da morte de Couraça (Criolo) e Ana (Kênia Bárbara) a problemas aparentemente psicossomáticos de Guto, que se muda para a antiga casa do avô no interior do estado do Rio de Janeiro com sua esposa Tereza (Carol Castro) e seu filho Miro (Alexandre Varella).
Poderia ter sido uma história de legítima vingança da escravidão, como o paraibano “O Nó do Diabo” (2018) se propõe a dissecar em seus cinco capítulos, mas “O Juízo” se aproxima narrativamente do controverso “Vazante” (2017), dirigido por Daniela Thomas, retratando a memória da escravidão de forma pouco responsável. Com muito esforço é possível atribuir alguma linguagem metafórica ao peso dos assassinatos cometidos pelo avô de Guto, mas a obra reforça reiteradamente a perseguição negra que acomete a “triste” família do protagonista.
Algumas outras incoerências são apresentadas – sem um recorte específico de época, podendo-se atribuir ao tempo contemporâneo, as mulheres são representadas de forma incômoda. Tereza sempre organiza a casa, faz a comida, tira os pratos da mesa, complacente à situação frágil do alcoolismo do marido, atribuindo à moça uma visão subserviente que não atribui camadas ou complexidade alguma à personagem. Ele, por sua vez, além de ter o vício em bebidas (que de alguma forma atenua a responsabilidade de suas ações), é machista e irresponsável.
A forma de O Juízo também oscila entre um desenho de som literal e potente, que ambienta o espectador no terror da obra; uma fotografia de Azul Serra que homenageia (ou em alguns momentos copia) de John Alcott a Walter Carvalho, e uma direção que oferece a Guto ninguém menos que Jack Torrance (personagem principal de “O Iluminado”) como inspiração direta. Naturalmente, Felipe Camargo tem uma atuação menos engenhosa que Jack Nicholson e o que sobra é uma caricatura pouco eficiente do gestor do hotel Overlook. Resta para a montagem de Sérgio Mekler – que dispõe de planos fechados e escuros do interior do casarão e exteriores em grande angular e neblina – criar a atmosfera rítmica que o horror demanda. Há momentos de tensão eficientes em sua aclimatação, angústia e ritmo, sobretudo no terceiro ato, mas o didatismo na narrativa e uma falta de cuidado com a representação dos negros escravizados prejudicam o filme como um todo, não alçando o filme ao patamar que merecia – algo não passível de reparo pelo ballet com que fotografia, direção de atores e montagem são costuradas.
Ficha Técnica
Direção: Andrucha Waddington
Gênero: Terror, Suspense
Duração: 90 minutos
Elenco: Felipe Camargo, Carol Castro, Criolo, Fernanda Montenegro, Lima Duarte, Kênia Bárbara.