Por Luciana Ramos

 

Aos embalos do jargão “O mundo inteiro está assistindo”, Abbie Hoffman (Sacha Baron Cohen) e Jerry Rubin (Jeremy Strong) cortaram multidões para entrarem no tribunal onde seriam julgados por iniciarem um motim. A acusação decorria da confusão durante um protesto na convenção democrata de 1968, sufocado por força armada – que não teve sua conduta questionada.

Ao total, eram oito os apontados como “incitadores de violência”: Hoffman e Rubin representavam os Yippies, uma organização antissistema; Tom Hayden (Eddie Redmayne) e Rennie Davis (Alex Sharp), a sociedade para estudantes democratas, que se posicionavam contra a indicação de Hupert Humphrey para concorrer contra Nixon pela vaga de presidente; na mesma pauta, guiava-se Dave Dellinger (John Carroll Lynch), líder do MOBE (esforço antiguerra), que entendia que tal nomeação significaria a extensão da intervenção militar americana e, por último, havia Bobby Seale (Yahya Abdul-Mateen II), presidente do movimento Panteras Negras que visava discursar a favor dos direitos civis.

As diferentes nuances das pautas, unidas em torno da indignação com a conduta do Partido Democrata, denunciava a fragilidade da acusação do procurador-geral John Mitchell (John Dorman): a multiplicidade de argumentos e métodos são características muito mais proeminentes do jogo democrático do que de uma união anarquista que visaria incitar violência contra os seus próprios manifestantes. Porém, as alegações jurídicas eram dispensáveis neste caso pois, conforme Hoffman iria pontuar diversas vezes, tratava-se de um processo político – embora esta possibilidade não existisse na Constituição americana.

O processo foi extremamente longo e recheado de brechas, contravenções e irregularidades que iriam colocar em xeque a própria noção de democracia em um país que sempre se gabou da polidez do seu modelo. Foram inúmeras as manipulações do júri, objeções descabidas e infração das garantias individuais (como o uso de agentes infiltrados e áudios obtidos ilegalmente).

De maneira ainda mais flagrante, há a desconexão do caso de Bobby Seale (o oitavo acusado) com a dos outros homens. Incapaz de ser comprovada sua participação nos momentos decisivos do caos que se instalou na cidade, ele foi julgado com os demais apenas por ser uma figura influente do Panteras Negras – e o único a ser preso e amordaçado, por sinal. Como mesmo explicita em determinado momento de “Os 7 de Chicago”, sua figura representava o “perigo” em uma América racista e resistente a mudanças sociais.

O mais interessante no jogo composto por Aaron Sorkin, que escreveu e dirigiu o filme, é a exposição clara (quase cristalina) das forças políticas e antidemocráticas em jogo que, embora tenham ganhado resistência de uma parte do público, foram engolidas e assimiladas por outro, que se guiavam pelo medo, ignorância e preconceito. Este era o caso do próprio juiz Julius Hoffman (Frank Langella), que não parecia arrefecer-se diante do peso das suas obrigações legais e, por isso, transformou o tribunal em um espaço de exercício do seu poder.

A fim de compor este entendimento na mente do espectador, Sorkin prefere não perder tempo remontando os eventos dos protestos, partindo logo para o início do julgamento, condensando em flahsback os momentos mais essenciais conforme eram contestados na corte. Tal construção é importante para desmontar a aparência legal do processo e expor em detalhes o quanto o próprio conceito de sociedade democrática é frágil quando as instituições estão corrompidas.

A narrativa é pesada em detalhes, o que coloca a verborragia comum aos roteiros de Sorkin (“A Rede Social”, “Steve Jobs”) em ótimo uso. Igualmente importante é a sintonia do elenco, que consegue elevar o material, pontuando de maneira precisa as dissonâncias de um grupo forçado a se defender como único, indissolúvel. Destacam-se na produção os trabalhos de Sacha Baron Cohen e Jeremy Strong na parte cômica e antiestablishment, sendo capazes tanto de arrancar risos quanto de provocar reflexões acuradas sobre o processo legal e, na outra ponta, de Yahya Abdul-Mateen II, que consegue expor e a dor e indignação de Seale de maneira pungente.

“Os 7 de Chicago”, como outras narrativas audiovisuais (a exemplo da minissérie “Mrs America”) chega em um momento crucial, em que democracias são ameaçadas ao redor do mundo por regimes que flertam com autoritarismos em diferentes formas – incluindo o próprio EUA. Em um movimento harmonioso, artistas voltam-se à época anterior de convulsões sociais para, por meio dos relatos ficcionais daqueles eventos, provocarem a chama da resistência no coração de cada espectador, lembrando-lhes de que é mais fácil do que parece transgredir os limites democráticos, mas a resistência sempre terá lugar enquanto o mundo estiver assistindo.

Ficha Técnica

Ano: 2020

Duração: 129 min

Gênero: drama, suspense, biografia

Direção: Aaron Sorkin

Elenco: Eddie Redmayne, Sacha Baron Cohen, Jeremy Strong, Mark Rylance, Joseph Gordon-Levitt, John Carroll Lynch, Alex Sharp, Yahya Abdul-Mateen II, Frank Langella

Avaliação do Filme

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