Por Luciana Ramos
Matt Rufie desenha desde a infância e sempre se expressou por meio de seus personagens. Seja nas tirinhas disponibilizadas no extinto My Space ou HQs elaboradas e vendidas em feiras, ali estavam impressas as suas ideias de mundo – do estilo de vida ao humor e reflexões sobre sua geração, o sapo Pepe representava a Matt enquanto artista.
Foi com muita surpresa, portanto, que ele descobriu a replicação em massa do seu desenho no site 4Chain, que nasceu com perfil colaborativo e cresceu para um espaço legitimado de radicalismos. Enquanto amigos e colegas de profissão o advertiam aos perigos tanto da infração de copyrights quanto de potenciais deturpações da mensagem do personagem, o criador preferia abster-se do meio, agindo como um espectador da própria destruição.
O sapo Pepe foi se transformando paulatinamente em algo demoníaco. O semblante feliz e descolado, típico da sua atitude niilista em relação à vida – tudo o que queria era pizza, relaxar com os amigos e gozar do ócio – foi ficando carregado de tristeza e raiva. O mesmo aconteceu com seu bordão, “feel good man”, descontextualizado para então ser colado a memes que expressavam ironia. Com o tempo, a imagem e as palavras passaram a ser atribuídas a ideias conservadoras, culminando no acoplamento da arte de Matt, antes inocente, a expressões criminosas como racismo, xenofobia e misoginia.
Nesta altura, o artista fez um esforço e tentou esclarecer publicamente os significados reais dos seus desenhos; ninguém ouviu. Tentou, então, criar uma campanha no Twitter para reaver sua criação, mas a #savepepe fracassou. Ele parecia desconhecer o funcionamento da própria internet e seu potencial devastador: como sentimentos ruins e notícias falsas são dissipados mais rapidamente ou a forma com que pequenos, mas expressivos grupos se organizam em sites obscuros como o 4Chain para jorrarem suas frustrações sob o prometido manto de anonimato.
Um dos aspectos interessantes do documentário “Feels Good Man”, que integra o catálogo da 44ª edição da Mostra Internacional de Cinema de SP, é o equilíbrio entre a miopia do artista e a profundidade de estudos de especialistas sobre os mecanismos da world wide web. Enquanto antropólogos dissecaram o apelo dos memes e sua fundação na imitação como parte-chave da cultura desde os primórdios, cientistas políticos se debruçaram sobre como estas criações simplistas podem ser usadas na política, servindo de estimuladores de sentimentos primitivos, que minam a capacidade racional de questionamentos e mobilizam a massa em prol de candidatos que melhor reflitam suas angústias e temores até então suprimidos.
*Essa crítica faz parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de SP
Como estes mesmos alegam, se nas campanhas políticas oficiais existem limites éticos intransponíveis, nas “terras livres” e não-reguladas da internet, estimula-se qualquer tipo de discurso ou violência para alcançar o objetivo preterido. O documentário deixa claro que este processo é, muitas vezes, orgânico, idealizado por pessoas comuns dentro da plataforma e reforçado pelas engrenagens oficiais. Mas o que as levam a expressarem abertamente valores fascistas?
Este, talvez, é o ponto mais triste e lamentável. A exemplo de dois entrevistados que são adeptos do 4Chain e usaram o sapo Pepe inúmeras vezes ao longo dos anos, tais agressões ao pacto civilizatório resultavam da raiva ardente e absoluta que inundava a falta de perspectiva social daquelas pessoas, em geral jovens que nunca conquistaram independência financeira e viviam nos porões dos pais. Esta latência travestia-se de um niilismo macabro nas redes, disposto a incitar o ódio como simples oposição à troca de ideias ou a qualquer expressão mais saudável.
O sapo Pepe, portanto, combatia a felicidade programada e com filtros do Instagram se transformando em um nazista e à tentativa do seu criador de salvar o personagem com vídeos de gritos odiosos. A cada movimento opositor de apaziguamento, havia uma mobilização disposta a aumentar a aposta, ignorando, para tanto, qualquer limite, como mostram as saudações a um atirador em massa na plataforma…usando Pepe, o sapo.
“Feels Good Man” é narrativamente didático, mas isso não o torna menos assustador. Ao expor a história de um artista que perdeu absolutamente o controle sobre sua criatura, discorre sobre o apelo da internet a divulgação de discursos de ódio – levando a ponderações sobre necessidades de regulamentação, por si só difíceis devido à vastidão e rapidez da ferramenta. Por outro lado, ao indicar o uso orgânico do mesmo sapo em ambiente e contexto totalmente diferentes, nos protestos de Hong Kong, propõe um debate sobre como um símbolo pode alterar seu significante a partir da interpretação da comunidade em que se insere, uma interessante reflexão acerca da própria construção da cultura.
Ficha Técnica
Ano: 2020
Duração: 92 min
Gênero: documentário
Direção: Arthur Jones