Por Luciana Ramos

 

Em posse do livro de Daphne du Marrier (embora existam especulações sobre a autoralidade deste conteúdo), Alfred Hitchcock vislumbrou um suspense gótico nas páginas de “Rebecca”. Retirados os excessos e enaltecidos os conflitos psicológicos da protagonista (devidamente sem nome) e da governanta Sra. Danvers, obteve-se um clássico, o primeiro filme americano do diretor e o seu único a ganhar um Oscar na categoria principal.

A polidez da obra cinematográfica impediu muitos a readaptarem os escritos de du Marrier até que a Netflix resolveu assumir o projeto, contratando um diretor tipicamente de estúdio para conduzir a ação dramática. Mais fiel ao material original, a nova adaptação carece da pungência da versão de 1940, já que teve a atmosfera psicológica fluidificada em altas doses de romance e assertividade nas interações dos personagens, que rarearam os espaços de especulação do espectador – e, assim, a aura de mistério.

No filme de 2020, imperam cenários grandiosos, luxuosos nos detalhes e falta a compreensão da essência da obra. Esta deveria refletir a jornada da Sra. De Winter (Lily James) em um mundo recheado de regras sociais que não domina. Estando em uma posição desvantajosa, ela se deixa levar pelas histórias que ouve da primeira esposa do seu marido, que morreu sob circunstâncias misteriosas. Assim, trata-se muito mais do que ela interpreta e absorve do que o que lhe é contado de fato.

Cada pequeno comentário parece reafirmar sua inadequação, levando-a a uma espiral de loucura. Não obstante, na narrativa original há a imagem do marido muito mais velho como uma figura paternalista, distante, exigente e misteriosa – algo trocado na nova versão pelo charme de um rapaz jovem e abertamente apaixonado (Armie Hammer). Em contraponto à negligência de aspectos fundamentais, há o tratamento melodramático das visitas sociais, que acabam desviando a atenção do seu aspecto protocolar, pouco íntimo, reforçador do desconforto de ser mulher em uma sociedade que lhe nega uma identidade própria.

Ao contrário da obra hitchcockiana, focada no terror psicológico, a nova versão investe em uma narrativa mais conservadora, cumprindo em etapas bem demarcadas as jornadas dos seus personagens – de romance ao mistério, de drama de tribunal ao romance novamente. Pretere-se, portanto, a camada de suspense e, com isso, a parte mais interessante da obra.

O remake possui um caráter passivo, amenizando a angústia da personagem e a claustrofobia de Manderley com doses reconfortantes de interações harmoniosas do casal, ainda que o relacionamento deles sofra as esperadas oscilações. Embora a fotografia seja inadequada ao tom da produção, a direção de arte e o figurino encantam, tornando-se a melhor parte da experiência. Cabem também elogios à atuação de Kristin Scott Thomas que perdeu espaço de tela no filme de Wheatley, mas sabe aproveitar cada diálogo para enfatizar a devoção da Sra. Danvers à falecida Rebecca, de quem não consegue se desvencilhar.  

Sem o tom sufocante da interação incessante com a governanta dominadora, a Sra. De Winter ouve os comentários sobre Rebecca de fontes mais difusas na nova versão, o que restringe o impacto das histórias – embora Lily James tente pontuar dramaticamente cada passagem com expressões faciais caricatas. A sua personagem ainda sofre com alguns tons de empoderamento que parecem responder a expectativas latentes na sociedade atual, mas que são descoladas do contexto da obra.

“Rebecca” já é imbuída de um caráter feminista, visto que se trata de uma jornada de libertação feminina. Porém, na produção da Netflix parece haver uma pressa em se chegar neste ponto (talvez guiada pelo temor de não desagradar), produzindo sequências que não fazem sentido com o perfil da Sra. De Winter, como as que ela coordena o staff ou escolhe os pratos do jantar.

Apostando na mescla de gêneros para agradar os seus assinantes de forma mais ampla, a refilmagem da Netflix sofre com a necessidade de relevância embutida em toda readaptação. Sem nada de novo ou melhor para dizer, relega-se, mais uma vez, à diversão despreocupada e rasa, perdendo-se a oportunidade de potencializar os traços que fizeram do filme de Hitchcock um clássico.   

Ficha Técnica

Ano: 2020

Duração: 121 min

Gênero: drama, romance, mistério

Direção: Ben Wheatley

Elenco: Lily James, Armie Hammer, Kristin Scott Thomas, Sam Riley, Ann Dowd

Avaliação do Filme

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