Por Luciana Ramos

 

Cada país possui, em sua cultura, certas mitologias de origem que fundamentam a visão dos seus cidadãos acerca de seus papeis sociais. Algumas, como as do Brasil, são facilmente contestadas quando um observador se põe a estudar o contexto de formação histórica. Outras, como a ideia do sonho americano, são mais perniciosas, já que esta representa uma mobilidade social que existe nos EUA, mas descarta os inúmeros problemas estruturais e círculos viciosos que impõe limites à narrativa do self-made man.

O cinema contribuiu, desde sempre, para perpetuação deste mito fundador – são incontáveis as jornadas de sucesso e engrandecimento pessoal através do trabalho duro – mas, paulatinamente, passou a questionar seu fundamento por meio de narrativas que exploram uma camada historicamente negligenciada e que, por isso, tende a perpetuar um ciclo de pobreza e violência – casos de “A Qualquer Custo”, “Eu, Tonya” e até mesmo a série “Tiger King”.

“Era uma Vez um Sonho” promete uma dura (e melodramática) exposição deste estrato através do retrato que J.D. Vance fez da sua conturbada família em um best seller adaptado pelo veterano Ron Howard. O seu ponto de partida é 2011, enquanto estudante de direito da prestigiosa Yale. Os jantares e entrevistas que visam garantir a estabilidade financeira para terminar o curso impõem um acentuado nível de desconforto, vide sua latente falta de educação formal. Porém, um telefonema da irmã Lindsay (Haley Bennett) ressignifica a importância da sua experiência ao colocá-la em uma perspectiva maior, que abarca a sua intensa trajetória até o momento.

O espectador então é convidado a retornar a 1997, quando J.D. (Owen Asztalos) ainda é um adolescente que, de maneira cruel e chocante, começa a tomar consciência do quão instável é sua mãe, Beverly (Amy Adams). Da gentileza e afeto à rompantes violentos e demonstrações de instabilidade emocional, ela não oferece o mínimo de segurança aos seus filhos, rompendo assim o contrato social esperado deste elo.

Em uma espiral descendente, ela arrasta toda a sua família, tendo o vício em drogas como ponto central da sua imprevisibilidade. A fim de salvá-lo de um ambiente nocivo, a sua avó (Glenn Close) então decide cria-lo sob rigorosas regras, focando na sua educação como instrumento que o poupará de um destino similar.

Este ponto é central na argumentação narrativa e interessante por seu caráter paradoxal. Em inúmeras sequências e diálogos, o filme deixa clara a perpetuação da pobreza como produto de um sistema que ignora a camada social retratada: Beverly, por exemplo, não consegue ficar internada em um hospital após overdose e nem tratamento de reabilitação; seu filho, por sua vez, afunda-se em dívidas e, mesmo cursando uma boa faculdade, não sabe se conseguirá pagar o montante que sua bolsa não cobre. Da mesma forma, há a similaridade entre a falta de oportunidades de Mamaw e Beverly e a gravidez precoce de ambas.

Gira-se, portanto, em torno de um eixo crítico à fabula do sonho americano, apontando-se a dificuldade de sair do estado de miserabilidade para acessar o prometido sucesso financeiro. Em profundo contraponto, no entanto, inserem-se narrações em off que abrem e fecham o longa e enaltecem a jornada de J.D. (Gabriel Basso), reforçando o argumento de que o sucesso está meramente condicionado à vontade e esforço individuais.

Ademais, a “elegia dos caipiras” (título traduzido) se propõe a tecer uma homenagem a esta parte substancial do povo americano, mas o retrata de maneira um tanto rasa e descontextualizada, como explicitada na cena em que pessoas reverenciam um carro funerário. As explicações para tais hábitos são escassas e, em grande parte, expostas através de falas do protagonista já adulto, quando confrontado por preconceitos. As imperfeições são suavizadas por uma trama que aposta fundo no melodrama, com direito a uma cafoníssima montagem final que relembra os melhores e piores momentos da vida de J.D., apontados como formadores de caráter.

Não é possível, no entanto, afirmar que a experiência de “Era uma Vez um Sonho” é de todo ruim, já que o filme muito se beneficia do talento de Amy Adams e Glenn Close, que concedem performances riquíssimas e avassaladoras e demonstram extremo domínio da arte cênica. Os conhecidos traços e trejeitos são apagados com ajuda de uma extensa e talentosíssima equipe de maquiagem, que ajudam na adequação dos personagens ao cenário narrativo e, portanto, na imersão do espectador. Também se sobressai a direção de fotografia, que é bastante presente nos momentos de tensão (câmeras na mão, trêmulas) e sabem investir em boas metáforas visuais, como a tortuosidade do caminho que leva o garoto à casa dos familiares.

Porém, nem as virtuosas atuações, o esmero técnico ou mesmo as boas colocações sobre família e educação conseguem salvar a frustração em assistir uma obra que oferece relances de excelência para propositalmente esquivar-se, contentando-se com a positividade de um melodrama barato.

Ficha Técnica

Ano: 2020

Duração: 114 min

Gênero: drama

Direção: Ron Howard

Elenco: Amy Adams, Glenn Close, Gabriel Basso, Haley Bennett, Owen Asztalos

Avaliação do Filme

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