Por Luciana Ramos

 

Na miríade de adaptações cinematográficas de grandes obras literárias, dificilmente se encontra uma declaração de amor tão expressiva quanto a de Armando Ianucci à “A História Pessoal de David Copperfield”, obra preferida de Charles Dickens.

Mantendo a integridade narrativa e, ao mesmo tempo, expandindo a poesia lírica em construções estéticas arrojadas, o filme homônimo do diretor escocês exalta a qualidade do original e, no caminho, mostra-se uma ótima peça de entretenimento.

A cena de abertura apresenta o personagem principal que, diante de uma plateia, apresenta o seu propósito: discorrer sobre toda a sua vida para, então, decidir se ele é o herói da própria história ou se o título se adequa melhor a algum dos seus conhecidos que o abrigou, ajudou e confortou durante sua sinuosa trajetória. O convite a embarcar na sua vida ganha contornou literais quando David Copperfield (o excelente Dev Patel) invade a casa da mãe (Mrofydd Clark) no momento do próprio parto para narrar o acontecimento nos mínimos detalhes.

Sua origem privilegiada o conduziu a uma infância confortável, onde passava horas tendo sua imaginação estimulada pela mãe e por Piggoty (Daisy May Cooper), a adorável funcionária da casa que o tratava como filho. No entanto, o súbito casamento de Clara Copperfield com Murdstone (Darren Boyd) mudou sua rotina drasticamente…pela primeira vez. A moradia com a família do trapaceiro Sr. Micawber (Peter Capaldi) e seu trabalho em uma fábrica de garrafas jogou o garoto em um estrato social completamente diferente ao qual ele, para sobreviver, devia se adequar.

A oscilação da condição financeira é determinante para a formação pessoal de David pois lhe concede um olhar privilegiado não só sobre a peculiaridade de cada indivíduo que cruza o seu caminho como também uma percepção aguçada da Londres vitoriana que o cerca. O seu tino de escritor o leva se encantar pelas idiossincrasias do Mr. Wickfield (Benedict Wong), Mrs. Trotwood (Tilda Swinton), Mr. Dick (Hugh Laurie) e outros tipos que encontra e o seu olhar é certamente zombeteiro, mas nunca cruel. São exatamente estas duas qualidades unidas que dão o tom da adaptação de Ianucci, uma obra leve, extremamente engraçada e comovente.

A exuberância dos diálogos soma-se ao lirismo de certas passagens e tornam a experiência como um todo extremamente recompensadora. Na superfície, o público pode facilmente se conectar com o carisma de Patel e aceitar seu convite à aventura, passando pelas fugas mirabolantes do Sr. Miwcaber às pipas que desanuviam a mente do Sr. Dick – e, no caminho, encantando-se com o lar em forma de barco.

Em tom mais reflexivo, um pouco abaixo das piadas visuais, situa-se um rico panorama de uma sociedade desigual e, portanto, engessada, onde as pessoas menos privilegiadas lutam para a ascensão que não virá (a menos que seja um tipo imoral como Uriah Heep, interpretado por Ben Whishaw) enquanto os ricos distraem-se com banalidades. Uma importante exceção à regra é o protagonista, vítima de inúmeras reviravoltas que o levam a transitar pelos mais diferentes níveis. Consequentemente, ele abriga a dicotomia entre ser um cavalheiro, cumprindo o que o status exige, e não trair os que lhe estenderam as mãos, um processo que avança com sua maturidade.

Ao conseguir abarcar as nuances e complexidades do livro, o longa se mostra sensível e equilibrado, alternando a humanidade da proposta ao peculiar humor de Ianucci, repleto de ironias e progressões de piadas ao seu nível mais absurdo, o que produz cenas absolutamente hilárias. Ele aplica o mesmo esmero na concepção visual da obra, incrivelmente imaginativa, passeando com fluidez pelas mais diferentes referências: as gags de cinema mudo, as passagens teatrais, o cenário de papel sendo esmagado por uma mão maléfica, a subjetividade do olhar apaixonado que leva David a ver uma ridícula peruca em todos os monumentos urbanos.

O afiado elenco potencializa a comicidade das cenas exacerbando as peculiaridades de seus personagens. Ao centro está Dev Patel, mais uma vez provando que é extremamente talentoso – e subestimado em Hollywood. A sua escolha para um papel vitoriano, por sua vez, acena para a tendência de maior representatividade em obras históricas, algo que Ianucci oferece com o desprendimento necessário para confirmar sua relevância. Diante da combinação de tantos ingredientes positivos, “A História Pessoal de David Copperfield” torna-se irresistível.   

Ficha Técnica

Ano: 2019

Duração: 119 min

Gênero: comédia, drama

Direção: Armando Ianucci

Elenco: Dev Patel, Tilda Swinton, Peter Capaldi, Hugh Laurie, Ruby Bentall, Mrofydd Clark, Gwendoline Christie, Ben Whishaw, Daisy May Copper, Rosalind Eleazar, Benedict Wong

Avaliação do Filme

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