Por Luciana Ramos

As habilidades futebolísticas de Pelé são de tal modo incontestáveis que permanecem na memória de um povo desacostumado com o exercício da lembrança. São anedotas de suas façanhas por pessoas que assistiram em primeira mão a Copa de 70, comentários sobre seu posicionamento social ou mesmo discussões acaloradas sobre seu status no mundo do futebol.

Porém, muito além da capacidade de dribles impressionantes, Pelé existe como um símbolo de projeção internacional que ajudou a difundir a imagem de um país vibrante e moderno nos anos 50 quando, geopoliticamente, este permanecia às sombras. Como todo ser humano a ocupar posições míticas no imaginário popular, Edson Arantes do Nascimento abarca profundas contradições que ferem a sua imagem de ídolo e, no processo, expõe os dilemas do Brasil.

O mais novo documentário sobre sua vida, produzido pela Netflix, interessa-se muito mais em analisar a sua imagem diante de um contexto histórico e político do país do que em recontar aos mínimos detalhes seus feitos dentro de campo – ainda que dedique certo tempo para fazê-lo. Após um breve relato sobre suas origens humildes, que resvalam na ideia socialmente difundida do futebol como possibilidade de ascensão social, o longa enfatiza a jovem maestria de Pelé, dono de uma performance tão impressionante que é capaz de chamar a atenção do mundo. Assim, também nasce o primeiro uso da sua imagem: a face da modernidade.

O avançar da narrativa costura com mesmo peso histórias sobre jogadas fantásticas e derrotas que marcaram a trajetória do ídolo até esbarrar em um acontecimento que conduz o documentário a um outro ângulo: o golpe militar de 1964. Diante de um Brasil não mais democrático e que sofria com repressão, assassinatos e tortura, Edson resignou-se tranquilamente ao seu papel, abraçando o novo status quo sem contestações.

Ao concordar em colar a sua imagem à do terror institucional, Pelé fragmentou-se na cabeça dos brasileiros que sofriam com a perda de liberdades: ainda admirado pelo talento no futebol e condenado pela apatia política. O documentário dos britânicos Ben Nicholas e David Tryhorn faz um grande esforço para amenizar sua conduta, chamando, para isso, figuras ilustres como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o músico Gilberto Gil para refletirem sobre sua representação imagética diante da complexidade histórica.

Em determinando momento, o jornalista Juca Kfouri (ávido crítico da Ditadura) pondera o medo como fator possível para o alinhamento de Pelé, mas o próprio, ao ser entrevistado, minimiza sua participação, abrindo espaço para a sua latente falta de preocupação social – visto que, como mesmo admite, foram anos de ouro para ele.

A dicotomia escancara-se na chegada ao ponto da Copa de 70, evento ao qual o filme dedica um longo espaço para abarcar toda a sua complexidade. Ao mesmo tempo alvo de um investimento maciço do Governo que, em sua época mais dura, precisava de algum produto social que “acalmasse os ânimos” (velha lógica do “pão e circo”) e válvula de escape para tantos brasileiros oprimidos, o evento motivou a paixão nacional e, embora sob slogans fascistoides, não foi marcado na história como um símbolo do poder do regime militar, mas uma conquista pessoal de Pelé.

Explorando contradições, “Pelé” se dispõe a abarcar todas as facetas do seu mito e, no processo, ajuda a explicar as complexidades da história brasileira. Claramente um produto de exportação – com produção e direção estrangeiras – a obra toma o cuidado de explicar cada momento-chave em detalhes, um ponto positivo que concede dinamismo à produção. O mesmo esmero se estende à direção, montagem (com inúmeras imagens de arquivo) e trilha sonora, essencialmente pautada por canções que refletem o espírito do Brasil.

Ficha Técnica

Ano: 2021

Duração: 1h48min

Gênero: documentário

Direção: Ben Nicholas e David Tryhorn

Avaliação do Filme

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