Por Luciana Ramos
Diante do esfacelamento da Iugoslávia depois da queda do regime soviético, inúmeras etnias passaram a lutar por independência e reconhecimento, causando conflitos armados na região movidos por território e poder. Os bósnios foram um desses grupos que viveram dias de terror em 1995, quando foram sitiados pela autointitulado Exército Sérvio da Bósnia. Dentre os focos de atuação, o mais cruel foi na cidade de Srebrenica, onde mais de oito mil bósnios de origem muçulmana foram mortos.
Esta havia sido declarada área de segurança de proteção da ONU, que tinha uma sede nos seus arredores para negociar a paz, mas, como mostra o angustiante “Quo Vadis, Aida?”, indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional, muito pouco foi feito.
A fim de contar este tenebroso pedaço histórico da Bósnia, a diretora Jamila Zbanic construiu uma narrativa em torno da figura de uma mulher, professora e mãe, que trabalha como tradutora para as forças de paz, mas se vê impotente diante da iminência de um massacre. Seu objetivo é o de proteger sua família, composta pelo marido e dois filhos, a todo custo.
O título refere-se a uma passagem bíblica em que São Pedro encontra Jesus ressuscitado ao fugir de uma crucificação e é orientado pelo mesmo a retornar e cumprir o seu destino. Quo vadis, ou “para onde vai?” é a pergunta que o apóstolo lhe faz e, na trama de Zbanic, reflete a perambulação frenética da protagonista em busca da salvação, recusando-se ao destino proposto pelas forças do militar Ratko Mladic (Boris Isakovic, marido da cineasta).
Servindo como olhar-guia do público, Aida (a hipnotizante Jasna Djuric) busca nas adversidades pequenas frestas para tentar salvar os entes queridos, sendo paulatinamente oprimida pelas circunstâncias. Por causa do seu trabalho, tem acesso a informações privilegiadas e testemunha em primeira mão a inação da ONU, que deveria agir como garantidora da paz, mas atém-se a burocracias, descaso e concessões. Diante do sumiço de funcionários dos altos escalões da instituição, os capacetes azuis que coordenam a ação local mesclam entre o desespero e a aceitação de que os destinos dos milhares de bósnios dentro e fora de suas sedes serão decididos por Mladic e seus comparsas.
A diretora exime-se de realizar grandes contextualizações acerca da origem ou particularidade do conflito, investindo no seu potencial emocional e concentrando, para isso, a ação na protagonista. Infelizmente, tal escolha acarreta certa desorientação inicial de quem não possui familiaridade com o fato histórico – aspecto superado ao longo da trama – assim como a indicação apenas superficial de outros pontos discursivos, como o estupro de mulheres pela força militar.
Os movimentos de câmera são fluidos e refletem a incansável busca de Aida. Em contraposição ao processo de desumanização do conflito, pontuado pelas hordas de pessoas e o tratamento concedido por ambos os lados das negociações, investe-se em planos lentos focalizados em inúmeros rostos, que servem de lembrete ao espectador da importância de cada vida.
Há espaço ainda para uma poderosa cena final, que coloca pessoas de lados opostos do conflito juntas em uma apresentação escolar infantil. Os rostos mais uma vez focalizados, agora preenchidos de uma história de luta e perdas, imprimem em suas feições as consequências do conflito.
“Quo Vadis, Aida?” é um trabalho primoroso de Zbanic e possui como principal trunfo a sua própria existência, já que desafia uma onda de negacionismo na Bósnia, composta por algumas autoridades que ignoram as dimensões do conflito e a designação de genocídio dado pelo Tribunal Internacional de Haia. Mais do que uma narrativa potente, o longa serve como registro de um momento histórico cruel e covarde.
Ficha Técnica
Ano: 2021
Duração: 101 min
Gênero: drama, história, guerra
Direção: Jamila Zbanic
Elenco: Jasna Djuricic, Boris Ler, Izudin Bajrovic, Dino Bajrovic, Johan Heldenberg, Raymond Thiry, Boris Isakovic