Por Luciana Ramos

 

No farfalhar dos sinos, a equipe de funcionários se agita, tentando descobrir qual membro da família Crawley solicitou assistência. Acontece que em Downton Abbey cada pessoa tem uma função bem definida, sendo o elo que os une o dever em servir a abastada família dona de uma imensa propriedade no interior da Inglaterra. Todos ali, seja no andar de baixo ou no de cima, possuem suas próprias angústias, desejos e dificuldades e é exatamente na exploração da miríade de personalidades e sentimentos conflitantes que reside o grande atrativo de “Downton Abbey”, série britânica desenvolvida por Julian Fellowes.

O sistema de sinos que perpassa os cômodos da grande casa é apenas um indicativo da complexidade daquela estrutura, que segue regras muito bem definidas. Os Crawley se criaram nesse ambiente e aprenderam, cada um a sua maneira, a se movimentar mais na escala social, abandonando preconceitos e abraçando, no caminho, a felicidade. Tramitando entre dramas de sucessão, direitos femininos, maternidade e os conflitos de classe, a série migrou da necessidade de contemplar um formato televisivo bem definido (com plot twists e arcos bem-marcados) para uma ideia mais fluida, quase uma observação novelesca da vida de seus personagens, a princípio revisitada em especiais de Natal e, agora, filmes.

A exemplo do primeiro longa, “Downton Abbey II – Uma Nova Era” começa relembrando pontos narrativos que já tomaram o centro da trama mas, uma vez resolvidos, foram incorporados ao senso de normalidade da vida dos habitantes de Downton: Phyllis Baxter (Raquel Cassidy) não tem mais vergonha de gostar de Carson (Jim Carter), já que eles agora vivem juntos e felizes; Edith (Laura Carmichael), por sua vez, continua a buscar o equilíbrio entre maternidade e vida profissional, mas superou o temor em ser julgada e declara com igual orgulho o amor pelo jornalismo e pela filha que teve fora do casamento.

Uma vez estabelecido o cenário, a trama parte para a apresentação de dois conflitos. O primeiro diz respeito ao passado de Lady Grantham (Maggie Smith), que herda uma villa no sul da França de um homem com quem passou uma semana no passado. O fato surpreende a todos – em especial pelo modo como sempre repreendeu qualquer comportamento que desviasse do tradicionalismo – e impõe uma dúvida cruel na cabeça de Robert Crawley (Hugh Bonneville), que nasceu pouco tempo depois da aventura. Desde a série, sua personagem se define através do título e, por isso, a simples indagação sobre a veracidade de sua origem constitui um questionamento de toda a sua existência. Parte da família decide viajar a convite para conhecer o local na esperança de saber mais sobre o assunto, o que se configura um belo pretexto para explorar mais uma belíssima locação, rodeadas de verde e mar, além de abrir espaço para utilização da sisudez britânica de Carson como alívio cômico.

Já em Downton, diante das dificuldades financeiras que se impõem na manutenção do local, Lady Mary (Michelle Dockery) se vê obrigada a alugar o espaço para um equipe de filmagem, comandada pelo diretor Jack Barber (Hugh Dancy). Muitos dali, sejam membros da família ou da equipe de funcionários, veem a atividade cinematográfica – ainda incipiente no final década de 20 – como um exercício de vulgaridade, sentimento reforçado pela falta de decoro de Myrna Dalgleish (Laura Haddock), a glamurosa estrela do filme. Esse sutil embate entre tradição e vanguarda, além de interessante, também reforça o cinema como um ambiente de maior ascensão social e, assim, de maior autenticidade, tema que mexe profundamente com Barrow (Robert James-Collier).

Além das eventuais trapalhadas do processo de filmagem, o roteiro faz questão de abordar um dos momentos mais interessantes da história cinematográfica: a transição do mudo para o sonoro, apostando no desequilíbrio vocálico de Myrna e Guy Dexter (Dominic West) para conceder maior densidade à trama. Entre os dois polos narrativos, cada personagem é pessoalmente tocado em algum ponto, podendo passar por um processo transformador ou servir de apoio para outra pessoa. É uma construção bastante complexa, embora o filme carregue em si uma qualidade leve e escapista, e demonstra o talento de Fellowes em saber o melhor modo de extrair novas histórias de cada um deles, sempre respeitando suas personalidades.

Quase tão importante quanto a trama é o encanto imagético, traduzido pelo esplendor de locações, figurinos e objetos que nos transportam para a época e deleitam os olhos. O altíssimo nível de produção já se tornou usual e configura-se como um dos principais atrativos da produção. Sempre em movimento, as câmeras passeiam pelos cômodos e rostos, aproveitando cada detalhe dos ambientes, mas nunca perdendo de vista o foco emocional.

Exemplo disso é o terceiro ato de “Donwton Abbey II”, que presta uma belíssima homenagem à figura de Lady Grantham e estabelece relações entre gerações diferentes da família, substituindo o valor financeiro (proprietário) que até então ditava a narrativa pela importância do legado da matriarca, que imprimiu sua marca nos corações e mentes de cada Crawley. É um belíssimo desfecho – tanto no campo emocional quanto estético – que reforça a alegria de se poder espiar, mais uma vez, um acontecimento em Downton Abbey. Com astúcia, humor e leveza, Julian Fellowes conseguiu construir um universo convidativo que permanece empolgante após tanto tempo.

Ficha Técnica

Ano: 2022

Duração: 2h 5 min

Gênero: drama, romance

Direção: Simon Curtsi

Elenco: Michelle Dockery, Maggie Smith, Tuppence Middleton, Hugh Dancy, Elizabeth McGovern, Dominic West, Laura Haddock, Allen Leech, Joanne Froggatt, Laura Carmichael, Hugh Bonneville

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