Por Luciana Ramos
Maren (Taylor Russell) é uma garota retraída, observadora e bondosa. Sua voz baixa e falha se contrapõe ao seu apetite em comer pessoas, o que a leva a ser abandonada pelo pai, que alega não ter mais ferramentas psíquicas ou sociais para conduzi-la pelo mundo. Intrigada pela ausência materna, ela assume que sua condição talvez seja genética e, por isso, decide partir em uma viagem pelo meio-oeste americano à sua procura.
No caminho, encontra Sully (Mark Rylance), um senhor de meia idade que nota a condição especial da garota – há uma espécie de cheiro singular emanado pelos canibais – e a convida a um banquete. Sua filosofia de vida é comer apenas quem já está morrendo e, relutantemente, Maren aceita, primeira pedrinha na construção de sua identidade própria, livre das amarras paternas. Porém, há algo no homem que a incomoda, então ela foge…e se depara com mais alguém especial: o jovem Lee (Timothée Chalamet), com cabelo rosa e jeans descolado, que é convencido a guiá-la ao paradeiro da sua mãe.
Reticentes e lacônicos, eles vão aos poucos se abrindo sobre suas experiências, medos e expectativas. Maren ainda não sabe o que fazer de si ou como achar um equilíbrio entre o desejo visceral e uma existência ética. Já Lee acredita ter achado o caminho vivendo às margens, sem ser notado, usurpando de vítimas aleatórias suas posses e sua carne.
Assim, o senso de não pertencimento que assombra a ambos é substituído paulatinamente pela identificação romântica de que há alguém capaz de entendê-los, aceitá-los e amá-los como são. Adaptado do romance de 2016 escrito por Camille DeAngelis, “Até os Ossos” usa o canibalismo como metáfora para a exploração de uma história de amadurecimento, uma dissertação sobre as amplitudes e limites do amor, um jogo que opõe a identidade individual e união de dois corpos.
O diretor Luca Guadaginino já havia flertado com a questão em “Me Chame Pelo Seu Nome”, também estrelado por Timothée Chalamet, mas aqui ele parece desafiar a ideia de simbiose, tanto pelos constantes lembretes do casal da dureza da realidade que os segue (na figura de outros canibais), quanto na própria exploração do tema. Até certo ponto, ele evita mostrar extensamente o processo de decomposição canibal, focando em planos de detalhes longos o suficiente para lembrar ao público a essência dos personagens. Cobertos pelo sangue, eles se mostram animalescos, mas tentam racionalizar suas ações com um enumerado de justificativas. Porém, nem toda a ponderação narrativa é capaz de suprimir o asco pelo tema. Mesmo considerando as variantes que explicam seu uso, trata-se de algo que repele o espectador, criando um certo afastamento emocional. Ciente disso, Guadagnino abusa do romantismo nas demais sequências, apostando todas as suas fichas em um jogo de empurra e puxa que quase funciona.
A verdade é que, fora o desgosto à metáfora, o filme sofre com outras escolhas de roteiro. Para começar, trata-se da história de dois jovens marginalizados que externam o medo de serem descobertos, mas parecem transitar tranquilamente nos limites sociais: além de ninguém parecer realmente desconfiar deles, Maren e Lee deparam-se constantemente com pessoas semelhantes, criando um arcabouço familiar que diminui a sensação de perigo e urgência. Ademais, aposta-se em um delineamento um tanto maniqueísta de Sully que, embora justificado, prejudica o engajamento emocional do filme.
Em contraponto, está a dupla de atores principal, que oferece doses generosas de vulnerabilidade a seus personagens, tornando suas dores e angústias simpáticas ao público. Em destaque, está a performance vigorosa de Taylor Russell, cuja expressividade corporal domina a tela, por vezes captando a atenção da câmera. Seu olhar, sua voz e o seu andar vacilante servem de contraponto à sua natureza e ajudam na composição de uma personagem complexa e profundamente humana.
Toda essa emotividade é captada com segurança por Guadagnino, que combina os artifícios estéticos do road movie com seu característico apreço por closes, tudo combinado a uma granulação de imagem que distancia a narrativa do presente (ela é passada nos anos 80), criando mais um espaço de conforto entre filme e público. “Até os Ossos” não é tão impactante quanto gostaria, mas oferece elementos suficientes para sua apreciação, em especial a emocionalidade visceral de Russell.
Ficha Técnica
Ano: 2022
Duração: 2h 11 min
Gênero: drama, horror, romance
Direção: Luca Guadagnino
Elenco: Timothée Chalamet, Taylor Russell, Marky Rylance, André Holland, Chloe Sevigny, Michael Stuhlbarg