Por Luciana Ramos

Dono de um sorriso largo e profunda irreverência, Mussum tornou-se um dos mais aclamados comediantes do Brasil. Junto a Dedé Santana, Renato Aragão e Mauro Faccio (conhecido como Zacarias), encenou esquetes centradas em torno do “mé” ou que apelavam para a hilária contraposição entre uma indignação adorável – frente a situações em que não entendia ou se sentia enganado – com uma comédia física escancarada, superlativa. Isso sem contar no chapeuzinho pequeno demais para sua cabeça e no característico uso do is ao final de cada frase. A sua influência sobre diversas gerações é tanta que seu rosto e trejeitos permanecem acesos no imaginário popular.

Mussum era realmente do cacildis e, portanto, imprimir sua multifacetada personalidade em narrativa cinematográfica imperava um belo desafio. Escorregar nos maneirismos ou na armadilha de requentar incessantes esquetes, negligenciando a faceta emocional, parecia possível, mas, felizmente, o comprometimento e talento de Silvio Guindane transpuseram eventuais dificuldades. Seu filme é extremamente bem pensado e construído, sabendo costurar temas pertinentes, como o racismo e a homofobia, de maneira sutil, mas límpida.

Acertadamente, opta-se por uma construção narrativa cronológica, explorando os anos formativos de Antônio Carlos Bernardes (Thawan Lucas, Yuri Marçal e Ailton Graça) e, posteriormente, da sua criação mais conhecida. Nessa teia, o foco primordial é a relação entre o rapaz e sua mãe Malvina (Cacau Protásio e Neusa Borges), uma mulher preta e pobre que trabalhava como empregada doméstica e fazia de tudo para dar aos seus filhos uma vida melhor. Em contraponto, exigia muito deles, achando ser capaz de definir os seus destinos.

Para o jovem Carlinhos, a opção mais óbvia era a Aeronáutica, mas ele tinha outras paixões desde cedo. O samba ocupava um grande espaço em sua vida e, como a mãe achava que isso era coisa de gente à toa, ele tinha que dar os seus jeitinhos, apostando em pequenas enganações, misturadas à ingenuidade de dona Malvina e doses carregadas de bom humor para driblar a fera.

Aos poucos, as suas duas carreiras começaram a deslanchar, e Antônio Carlos teve que fazer uma escolha. Foi a primeira de muitas, como enfatiza o roteiro: como sua vontade de viver era grande demais, ele não dizia não e tentava abraçar o mundo inteiro sozinho. Obviamente, nem sempre isso é possível. Essas pequenas frustrações inundam aos poucos a cabeça do protagonista, impondo questionamentos sobre o modo como conduziu a vida nos anos subsequentes.

O longa também é uma história de acasos, unindo sorte e talento. Acidentalmente, começou uma carreira de comediante. Sem recusar nada, foi galgando espaço na TV brasileira até ser convidado para fazer “Os Trapalhões”. De outros atores, diretores e comediantes – mais notadamente Chico Anysio (Vanderlei Bernardino) – absorveu dicas que moldaram sua persona, mas Guindane faz questão de pontuar na narrativa que, sem o talento de traduzir situações banais em espetáculos de comédia física, nada disso teria adiantado.

Destaca-se a sua verve cômica em mais de uma oportunidade, principalmente pela opção de entremear acontecimentos importantes com esquetes do grupo de comédia. Esta funciona bem pois há o cuidado de imprimir características centrais de Mussum em outros pontos deslocados da narrativa – o modo como levava a mãe na conversa quando garoto ou como abria um sorriso expressivo quando estava feliz – criando, assim, uma arquitetura consistente.

O seu espírito bem-humorado e sempre disposto transparece nas suas interações com outros personagens, como Dedé Santana (Felipe Rocha), mas o humor do filme vai muito além, pontuado em pequenas improvisações que deixam as cenas mais naturais e fluidas. Os diálogos são extremamente bem escritos, equilibrando bem exposições diretas de alguns temas com pequenos acenos a outros – como a passagem em que Carlinhos e Malvina comem os restos do almoço já sem carne do patrão dela – que inserem discussões vitais à trama sem destoar o foco da leveza que define a produção.  

Ao centro, está o elenco afiadíssimo: Thawan Lucas, Cacau Protásio, Yuri Marçal, Felipe Rocha, Gero Camilo e Neusa Borges estão irretocáveis. Destaca-se pela força e carisma superlativos Ailton Graça, em seu primeiro papel de protagonista (por demais atrasado). Para os que acompanharam as peripécias de Mussum nos anos 80 e 90, é uma delícia o ver encarnar tão bem o comediante. Sua entrega é completa na fisicalidade, mas também nas passagens emocionais, em que consegue imprimir nas expressões faciais as lutas internas de seu personagem.

Há de se elogiar também o caráter técnico da produção, da direção de arte bem detalhada à fotografia que condensa sépias e coloridos com naturalidade. A caracterização de alguns personagens impressiona – caso de Larissa Luz como Elza Soares e Valderlei Bernardino como Chico Anysio – auxiliado pela maneira como os atores conseguiram reproduzir os característicos timbres dos artistas com naturalidade.

“Mussum, o Filmis” é reverente quando precisa, com pequenas pitadas críticas que ajudam a complexificar o seu objeto de estudo sem jamais desrespeitá-lo. É uma linda história de mãe e filho, do samba, do Rio, do Brasil – das extremas dificuldades à sede imensa de viver. Um absoluto deleitis.

Ficha Técnica

Ano: 2023

Duração: 1h 56m

Gênero: biografia, comédia, drama

Direção: Silvio Guindane

Elenco: Ailton Graça, Neusa Borges, Yuri Marçal, Thawan Lucas, Cacau Protásio, Cláudia Barbot, Vanderlei Bernardino, Jennifer Dias, Késia Estácio, Gero Camilo, Felipe Rocha

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