Por Luciana Ramos
Agasalhado, Napoleão (Joaquin Phoenix) desfila diante do exército castigado pelo frio e pela fome em território russo e lhe diz: “Estamos vencendo”. É claramente uma mentira, e apenas um exemplo do modo com que Ridley Scott decide retratar o general que virou imperador da França. O diretor escolhe como traço essencial da jornada a auto grandeza do personagem histórico – um misto de egocentrismo, megalomania e completo desinteresse nas necessidades alheias – e trabalha discrepâncias nos diálogos para enaltecer uma qualidade bufônica que torna a sua biografia surpreendentemente engraçada.
O humor é extremamente bem-vindo, em especial nas passagens entre Napoleão Bonaparte e o amor de sua vida, Josefina de Beauharnais (Vanessa Kirby). Em cena, seus intérpretes não se esquivam dos improvisos, concedendo uma dinâmica física ao casal que torna tudo mais provocativo. Fica claro nestas passagens a complexidade dessas figuras, entrelaçadas por um amor duradouro, mas tóxico. Seria interessante se o filme se propusesse a dissecar Napoleão a partir desse olhar mais intimista, mas Ridley Scott sempre foi ambicioso. Ele costura esse ponto focal com outros dois, que expandem a narrativa: as batalhas do exército francês e a carreira política de Napoleão, da ascensão como oficial militar ao exílio na ilha de Santa Helena.
Infelizmente, o longa demonstra certo deslumbramento com as sequências de embate e, embora filmadas com primazia, elas contribuem para uma extensão desnecessária da produção. Ao todo, seis batalhas são recriadas em certo nível de detalhamento, com preocupação em apresentar os tipos de formação e armadilhas usadas pelo general francês. Nesse sentido, a mais impressionante é Austerlitz e a relevante, Waterloo. As outras poderiam ser encurtadas para dar vazão a uma maior contextualização do panorama político efervescente da França, que permanece pouco explorado na tela.
Revela-se, nessa escolha, também um certo encantamento do diretor pelo personagem retratado. Claramente, a sua ideia é conduzir um estudo de um personagem tão famoso quanto, por vezes, absurdo, mas o longa em nenhum momento deixa-se mergulhar totalmente nessa ambição. Sente-se a necessidade de ambientar momentos históricos de maneira desnivelada (Austerlitz dura mais que o episódio da autocoroação), de forma que “Napoleão” acaba caindo no curioso hall de filmes longos (2h38m) que soam apressados.
Há muito o que cobrir em uma vida tão rica de reviravoltas e, ainda que peque no ritmo, o longa acerta muito na riqueza da produção. De fato, seria acurado dizer que o verdadeiro protagonista da trama é o dinheiro, mais especificamente o orçamento despejado pela Apple TV na obra. A empresa famosamente vem apostando em produções grandiosas com diretores renomados, que sejam capazes de alçar o seu canal de streaming a voos maiores tanto em popularização quanto em reconhecimento da indústria.
No caso de “Napoleão”, nota-se a riqueza na quantidade de figurantes, na composição complexa e extremamente bem filmada das sequências de guerra e no mix de texturas nas partes ambientadas na Corte, onde paredes, sofás e vestidos entalhados em fios de ouro e outros tecidos nobres enchem os olhos do espectador. É um deslumbre visual do começo ao fim, que traduz o nível de excelência que Scott opera há décadas.
“Napoleão” possui um interessante elo com outra produção recente: “O Último Duelo”, cujo lançamento foi eclipsado pelo apelo cafona de “Casa Gucci”. Estrelado por Matt Damon, Adam Driver e Jodie Comer, ele se propõe a contar três lados da mesma história e, ao fazê-lo, explora como os personagens masculinos (tão tóxicos e cheios de si quanto Napoleão) rapidamente criam versões onde são os heróis. O resultado é, ao mesmo tempo, cômico e pouco balanceado, assim como sua nova obra.
Ao centro está Joaquin Phoenix, que empresta sua persona fílmica a um personagem um tanto distante de tais qualidades, resultando em um combo estranho, mas apelativo. Na sua versão, Napoleão é antissocial, um pouco infantil e desajeitado, que vê em Josefina o único elo humano forte, mas rapidamente a abandona quando almeja concentrar mais poder. Sua habilidade em proferir palavras absurdas sob uma fachada séria e pomposa produz resultados hilários, em especial quando contracena com a sempre ótima Vanessa Kirby.
Além de carregar o coração do filme, Kirby se revela extremamente sagaz na maneira como conduz as interações com Phoenix, provocando-o e, quando preciso, usando a fisicalidade para delimitar algum ponto fundamental da relação – a exemplo de como joga subitamente pão no marido em um jantar cheio de convidados. A interação entre os dois é tão boa que é sentida quando o filme se desloca para outros campos.
Esses pequenos anseios não saciados tornam a experiência de assistir “Napoleão” um pouco decepcionante, ainda que o filme seja bom de modo geral e propicie sequências de tirar o folego. Falta maior concisão narrativa – ou talvez foco – mas a obra, ainda assim, é superlativa o suficiente para valer o ingresso no cinema.
Ficha Técnica
Ano: 2023
Duração: 2h 38m
Gênero: ação, aventura, biografia
Direção: Ridley Scott
Elenco: Joaquin Phoenix, Vanessa Kirby, Rupert Everett, Tahar Rahim, Mark Bonar, Paul Rhys