Por Luciana Ramos
O primeiro minuto de exibição de “Zona de Interesse” é preenchido por uma tela em preto e sons dissonantes e invasivos que prenunciam o terror. Quando questionado sobre essa escolha, o diretor Jonathan Glazer disse que sua intenção era atentar o espectador que, para essa experiência, seus ouvidos seriam tão importantes quanto a visão.
Em nenhum momento dos 105 minutos de filme as atrocidades do Holocausto são mostradas frontalmente. A ideia é implicar o horror profundo através de composições imagéticas que confrontem a paz e ostentação da família Höss com o campo de concentração que os cerca. É exatamente apostando no desprezo dessas pessoas, que se beneficiam de um sistema que mata gente impiedosamente, que o diretor trabalha o conceito de banalidade do mal e, assim, constrói uma das obras mais perturbadoras já feitas sobre o Nazismo.
Glazer afirma que sua maior inspiração cinematográfica para esse projeto foi “A Fita Branca”, de Michael Haneke, e é fácil notar as similaridades entre ambos os filmes. Se em um nota-se a paulatina difusão de uma mentalidade cruel entre crianças – que se moldariam em agentes e coparticipantes do sistema nazista – no outro aposta-se na dissecação da rotina de uma família que trabalha ativamente no funcionamento de Auschwitz.
A mise-en-scène calculada e contida mostra Rudolph (Christian Friedel), o patriarca, indo e voltando do trabalho todos os dias, enquanto sua esposa Hedwig (Sandra Hüller) caminha lentamente pelo ostentoso quintal e observa as variedades de plantas. Seus filhos alternam-se entre deveres escolares e brincadeiras, e tudo parece pacífico, a não ser pelos muros que cercam a propriedade. Aos poucos, os enquadramentos vão se expandido e confrontando a harmonia visual com elementos que quebram essa construção de maneira brusca, seja um homem de uniforme listrado que caminha entre o jardim trabalhando ou as chaminés que queimam incessantemente.
Sobrepondo-se à imagem está o som, que exerce um papel fundamental na argumentação do diretor. Gritos exasperados, barulhos de tiros e fogo, entre outros símbolos perturbadores do horror insistem a todo momento a desafiar a aparente tranquilidade dos Höss, que avidamente ignoram seus arredores. Nesse ponto, a figura de Hedwig é essencial, já que ela não é acometida por nenhum questionamento existencial; na verdade, parece regozijada em contar vantagens sobre os ganhos materiais advindos da profissão do marido. Em certo momento, ela conta animadamente para a mãe sobre a piscina que projetou no quintal; em outro, experimenta um casaco de pele apropriado de alguma prisioneira. Levando a vida de maneira amoral, ela surpreende até Rudolph por priorizar o seu bem-estar acima dos demais, incluindo o dele.
Tudo isso é mostrado com concisão naturalista. Sem grandes devaneios ou teatralidades, o horror é embutido no rigor das imagens. Para obter esse fim, o diretor optou por filmar cada sequência ao estilo documental (“mosca na parede”), com dez câmeras dispostas em diferentes ângulos capazes de captar o todo – aquilo que a família desejava mostrar e o que eventualmente “vazava” em cada frame. Opta-se em muitos momentos por planos simétricos e bem iluminados, sem sombras ou tonalidades dramáticas.
O único corte ao modelo vem da sequência que alude ao conto “João e Maria”, mostrando uma menina dispondo maçãs nos terrenos do campo à noite. Seu ato de bondade é mostrado nas sombras: esteticamente, as passagens são demonstradas como negativos de filme. No meio deles, seu rosto brilha, demonstrando a força de um pequeno ato de empatia. Esse resultado foi obtido com o uso de uma câmera militar adaptada que capturava calor, não luz, posteriormente corrigido por IA em pós-produção.
É um contraponto belíssimo à dureza daqueles personagens, que traduzem o tema principal do filme, o já citado conceito da banalidade do mal. Glazer ainda faz questão de, apenas por um breve momento ao final, justapor passado e presente para atentar à necessidade de se lembrar desse fato histórico a fim de não o repetir de nenhuma forma.
O resultado é incômodo de assistir, mas extremamente pertinente e de efeito duradouro. Por brincar com os dois sentidos principais do cinema – som e imagem – trata-se de um filme que retira o espectador da sua própria passividade, levando-o a investigar a dissonância de cada frame e se colocar criticamente diante do que é mostrado e, mais importante, do que se tenta esconder.
Ficha Técnica
Ano: 2024
Duração: 1h 45 m
Gênero: drama, história
Direção: Jonathan Glazer
Elenco: Christian Friedel, Sandra Hüller