Por Luciana Ramos

 

Publicado em 1964, “A Paixão Segundo G.H.” foi há muito considerado um livro inadaptável, dado o seu caráter introspectivo e, por vezes, metafórico. Adepto a desafios, o diretor Luiz Fernando Carvalho (“Os Maias”, “Hoje é Dia de Maria”) se lançou ao desafio há nada menos que vinte e dois anos. No período de encubação, o projeto sofreu lapidações para melhor incorporar – e potencializar – o texto em imagem, unindo os dois elementos constituintes do cinema.

O roteiro final, escrito por Melina Dalboni, não interfere no texto original, mas organiza o fluxo de pensamento em uma ordem que faça sentido ao espectador. Somam-se às ideias da personagem-título uma série de imagens que explanam os acontecimentos, seja de forma literal ou metafórica. O caleidoscópio de sensações que resulta da empreitada é exatamente o ponto do filme, que recusa uma abordagem narrativa formal, mergulhando na poesia de Clarice.

Afinal, quem é G.H. (Maria Fernanda Cândido)? Nem ela mesmo parece saber. Em uma manhã ensolarada na cobertura em que vive no Rio de Janeiro, a mulher, uma escultora rica, decide arrumar a sua casa. Sua empregada doméstica, Janair (Samira Nancassa), acaba de se demitir e G.H. julga necessário começar a organização pelo quarto que esta ocupara. E deste espaço brota a semente da inquietude: G.H. procura sujeira, bagunça e um pouco de caos, mas se depara com um ambiente organizado e limpo, com duas visões perturbadoras: um desenho grande nas paredes com os contornos de uma família e uma barata. O asco despertado pelo animal é o ponto de partida da desconstrução da personagem, que se lança a um perturbador fluxo de pensamento que vai, camada a camada, lhe despindo.

Ela começa a questionar suas impressões – como, por exemplo, o preconceito revelado nas suas suposições sobre o quarto de empregada – e termina se perguntando sobre todas as amarras sociais que limitam seus movimentos. Embora reconheça que tenha uma vida livre e privilegiada, a protagonista se dá conta da quantidade de coisas que abriu mão – ou foi forçada a fazer – para se encaixar no ambiente em que transita. Pouco a pouco, se anulou e agora precisa, no confronto com a nojeira da barata, fazer o caminho de volta.

A narrativa do filme segue sem julgamentos essa sucessão de descobertas, focando na tradução da angústia da personagem através da condução ativa da câmera, que passeia pelo rosto da atriz Maria Fernanda Cândido e contrapõe com a gosma nojenta do animal; por vezes, fecha no seu sufocamento, em outras, o esconde em frestas e atrás de panos. Em alguns momentos, os enquadramentos se abrem para revelar objetivamente detalhes de sua vida: a imensidão dos espaços, a vista para o mar e como tudo naquele apartamento parece perder sentido diante da realização da personagem que sua vida é solitária.

Algumas metáforas visuais são trabalhadas em repetição, escalonando aos poucos. Aqui, Carvalho decide por uma adaptação ainda mais sensorial que em “Lavoura Arcaica” (tido como outra obra inadaptável), pois nem se lança a adaptar as ações em cenas concatenadas, com interações de atores e outros pormenores do cinema formal. Não. “A Paixão Segundo G.H.” nunca abandona a “cabeça” de sua personagem e as imagens, nesse sentido, são construídas para melhor exemplificar suas ideias.

Parece bastante hermético, mas o filme consegue sim atrair e reter a atenção do espectador. A beleza do texto certamente ajuda, assim como o trabalho de direção, edição e direção de arte. Em especial, a obra muito se vale do talento de Cândido, completamente entregue ao papel. Ela sabe pontuar bem cada o peso de cada passagem e exprime em seu rosto o mix de emoções sentidos por G.H. É difícil imaginar um resultado tão bom em mãos menos talentosas.

“A Paixão Segundo G.H.” é um filme para ver, ouvir, sentir e experimentar a poesia de Clarice Lispector em toda a sua potência.

Ficha Técnica

Ano: 2024

Duração: 2h6m

Gênero: drama

Direção: Luiz Fernando Carvalho

Elenco: Maria Fernanda Cândido, Samira Nancassa

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