Por Luciana Ramos

Cortes são comumente descritas como detentoras de luxo, pompa e circunstância. Podem também, como diversos retratos históricos distintos explicitam, ser os lugares mais instáveis, palcos de guerras travadas com palavras manipuladas ou, em última instancia, marcadas por sangue.

Em seu novo filme, o diretor grego Yorgos Lanthimos volta o seu olhar para este microcosmo social, analiticamente destrinchando os mecanismos de obtenção, propagação e usurpação de poder. Para isso, debruça-se sobre o relacionamento entre três mulheres atentando, em especial, para as consequências desta progressão não só na vida de cada uma delas, como no destino do país.

Logo ao início, a Rainha Anne (Olivia Colman) apresenta à Lady Sarah Marlboro (Rachel Weisz) uma grande e elaborada maquete de um palácio, seu mais novo presente para sua melhor amiga. Esta finge humildade, porcamente encoberta pelo modo lascivo como encara a sua nova propriedade. Ela lembra à soberana, no entanto, que o ato poderia despertar comentários negativos, vide a guerra em andamento entre a Inglaterra e a França. A admiração em resposta daquela que deveria agir como a líder da nação sintetiza a relação das duas e fornece o primeiro lampejo de comicidade da trama.

Anne, chamada carinhosamente somente por Sarah de Senhora Morley, é uma mulher acometida por traumas físicos e psicológicos, de temperamento extremamente frágil, claramente inapta para governar. Em alguns momentos, chega a despertar ter o intelecto bem abaixo daqueles que a rodeiam, expressando dificuldade para entender o panorama geopolítico.

Sua limitação cognitiva abre brechas para Lady Marlboro assumir as rédeas, proclamando ordens expressas “a mando da Rainha”, assinando em seu nome e, inevitavelmente, governando a favor das suas convicções e interesses. Ao contrário dos demais, que temem a figura soberana, Sarah possui intimidade o suficiente para tratar sua amiga próxima com desdém, deboche, dureza e, ocasionalmente, carinho, construindo uma teia de dependência abusiva que é a base do seu poder.

Este é ameaçado com a chegada de Abigail (Emma Stone), uma prima distante que nasceu nobre, mas caiu em desgraça. Advogando em causa própria, ela começa a caçar brechas para melhorar sua posição. A oportunidade vem exatamente da observação paulatina entre o relacionamento dessas duas mulheres poderosas, este de caráter mais íntimo do que imaginava. Decide deliberadamente moldar o seu comportamento ao oposto de sua concorrente, de quem é dama. Por meio de bajulações incessantes, vai conquistando a confiança da Rainha, que vê a disputa pela sua atenção com certo divertimento.

O acirramento da batalha entre as duas desequilibra todo o funcionamento da realeza, levando ao avanço de outros players, como o incansável Senhor Harley (Nicholas Hoult), da oposição. Como em um intricado jogo de xadrez, casa ação provoca uma reação mais intensa até uma reconfiguração da posição de cada um, inclusive a da Rainha, que tenta, ainda vacilante, exercer a sua função efetivamente pela primeira vez.

É ao chegar neste ponto crucial de tensão que Lanthimos expõe a sua brilhante concepção do tema, esquivando-se de saídas narrativas fáceis para seus personagens. O tom pessimista que marca parte da obra serve como crítica ao jogo de poder, estampando a disparidade entre o seu usufruto e a sensação de satisfação ou, sequer, segurança.

Ao mesmo tempo, o diretor escancara a miopia de uma aristocracia egocêntrica, incapaz de olhar além dos arredores do palácio coberto de ouro. Esta alienação às necessidades do povo, a quem deviam governar, é explicitada em diversos momentos, como nas discussões sobre os caminhos do confronto com a França. Porém, em duas cenas, a futilidade da Corte é colocada de maneira mais escancarada: nelas, os poderosos, dotados de grandes perucas e excessiva maquiagem, disputam uma corrida entre patos ou se reúnem para jogar laranjas em um homem nu.

Este tipo de comportamento vulgar é reiterado pelo uso constante de linguagem chula e sexual, especialmente pela Rainha, de quem se exigiria o exemplo do decoro. Este artifício narrativo, além de causar a dissonância com a imagem preterida de refinamento, também funciona como alívio cômico, que ajuda a tornar a história bem mais palatável do que outras obras similares de época.

O roteiro afiado é potencializado pelo talento do trio de atrizes que conduzem a ação narrativa. Emma Stone, em seu melhor papel, possui extremo controle da sua personagem, oscilando fragilidade dissimulada a atitudes assertivas e nem sempre corretas, definidas pelo sabor do vento palaciano. Seu contraponto, Rachel Weisz, traduz a sagacidade da sua personagem (e ocasional desespero) sem deixar de humanizá-la. Juntas, suas personagens representam a dissimulação como instrumento de sobrevivência feminina em uma época incerta, onde o vencedor é aquele que se desprende com maior facilidade de conceitos morais.

Entre as duas, está a genialidade de Olivia Colman, completamente entregue no papel. É incrível ver a tradução elaborada de emoções no seu rosto, como observado durante o baile onde a Rainha inveja o fato de Sarah poder dançar. A instabilidade da sua personagem é colocada sob uma ótica cômica, mas atesta a periculosidade de se ter alguém em tais condições em um cargo de autoridade. Paulatinamente, a atriz evolui os trejeitos físicos que caracterizam a doença de Anne, demonstrando a sua capacidade enquanto atriz.

O jogo de palavras característico da trama é enaltecido por um belíssimo trabalho do diretor de fotografia Robbie Ryan, que optou ousadamente pelo descarte da luz artificial, atendo-se à luminosidade solar e de velas. Lanthimos, por sua vez, constrói uma sensação de estranhamento ao adotar câmeras grande angulares, que destorcem as margens das cenas, recurso que traduz metaforicamente as deformidades palacianas. A elegância visual, em conjunto a já citada qualidade narrativa, resulta em uma experiência cinematográfica intensa – divertida, cínica e desafiadora.

*Filme assistido como parte da cobertura da 42ª Mostra de Cinema Internacional de SP

Ficha Técnica

Ano: 2019

Duração: 119 min

Gênero: biografia, comédia, drama

Diretor: Yorgos Lanthimos

Elenco: Olivia Colman, Rachel Weisz, Emma Stone, Nicholas Hoult, Mark Gatiss

Trailer:

Imagens:

Avaliação do Filme

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