Por Luciana Ramos

 

Em 1989, o lançamento de “A Pequena Sereia” marcou uma nova e poderosa fase da Disney: seu primeiro longa-metragem animado desde “Bernardo e Bianca” (1977) e a primeira história com uma nova princesa desde “A Bela Adormecida” (1959). O impacto cultural do filme reabriu as portas da empresa para maiores investimentos e experimentações, catapultando o seu renascimento.

Dentre os estúdios de produção cinematográficos americanos, a Disney mostra-se especialmente suscetível aos movimentos de mercado, submetendo seus produtos às condicionantes que flutuam ao redor. Ao centro, dispõe-se o conceito de “cofre”, um lugar onde as propriedades intelectuais ficam guardadas até o momento certo de serem refeitas, embaladas mais ou menos com a essência original e relançadas para novos públicos. Foi essa mentalidade que concedeu não só caixa à organização, como sedimentou o seu lugar de entretenimento familiar – vide o fato que pais de trinta e poucos anos agora têm a oportunidade de apresentar a princesa Ariel aos filhos.

A nova era de reciclagem começou com “Cinderella” (2015) e vem sido inconstante desde então. Entre produções elogiadas (“Mogli – o Menino Lobo”, de 2016) e outras nem tanto (“A Bela e a Fera”, de 2017), nota-se uma certa dificuldade do estúdio em trazer de volta às telas a magia tão típica aos seus produtos. Seja pelo investimento no hiper-realismo dos personagens animais ou na falta de originalidade, de modo geral as refilmagens não têm empolgado o público.

Felizmente, a nova rendição de “A Pequena Sereia” escapa das armadilhas e apresenta uma belíssima obra de entretenimento, regada a boas músicas e um trabalho estético minucioso. O susto do realismo de personagens queridos como Sebastião (Daveed Diggs) e Linguado (Jacob Tremblay) é facilmente superado quando contrastado ao encantamento do fundo do mar, explorado em complexidade de movimentos de câmera. Por ele, a carismática Ariel (Halle Bailey) passeia enquanto coleta tesouros dos humanos e sonha com uma vida melhor. A sua cauda furta-cor interage com os feixes de luz que penetram do horizonte e colorem o mar com diferentes tons de azul. A riqueza visual é complementada pela representação da biodiversidade marinha, construída em cena como um balé aquático bem coreografado e harmônico.

Mantendo todos os elementos principais do original, a nova versão, dirigida por Rob Marshall (de “Chicago” e “O Retorno de Mary Poppins”) expande motivações e histórias pregressas dos personagens principais, expandindo a solidez do roteiro. Ariel, por exemplo, não se resume apenas ao encantamento pelo Príncipe Eric (Jonah Hauer-King), mas a sensação de liberdade que uma vida fora da água lhe inspira; ele, ao mesmo tempo, sonha com aventuras além das fronteiras do palácio e novas possibilidades de reinado. As suas jornadas, então, se complementam, ao invés de se esgotarem.

Da mesma forma, Ursula ganha um pouco mais de contexto para suas maldades, além de ser alavancada na caracterização (com paetês e tentáculos neon) e performance de Melissa McCarthy, que realiza uma homenagem à Divine, drag queen que marcou o cinema e inspirou o conceito original da “bruxa do mar”. Seus movimentos expansivos somam-se a falta de limites éticos em uma aparição perversamente bem-humorada, servindo um belo contraponto à protagonista.

Ariel é vivida por Halle Bailey e sua atuação talvez seja o grande trunfo da nova versão. Já revelada no mundo da música ao lado da irmã Chloe Bailey e com certa experiência na atuação (como na série “Grown-ish”), Halle está simplesmente encantadora no papel principal, traduzindo bem o misto de ingenuidade e encantamento da personagem, sem nunca a tornar enfadonha. Esse equilíbrio é especialmente difícil nas passagens em que a princesa perde a voz, mas a atriz aposta nas expressões faciais e corporais para compensar as limitações, fazendo um trabalho bastante convincente.

Ela é auxiliada nesse ponto da história por novas músicas, compostas em parceria por Alan Menken (melodista do filme original) e Lin-Manuel Miranda, em mais uma frutífera parceria com a Disney. Inseridas como uma janela para a mente da personagem, as canções também ajudam a manter o ritmo do filme, tornando-o mais e mais vibrante a cada balé coreográfico, seja no mar ou nas feiras caribenhas.

Entre as canções, destaca-se a ótima “The Shutterbutt”, um rap cantado por Daveed Diggs (Sebastião) e Awkwafina (Sabidão). Junto ao Linguado de Jacob Tremblay, os comediantes enchem o longa de leveza e humanidade – enquanto personagens, fornecem uma merecida rede de apoio à protagonista; enquanto atores, ajudam a produção a ser catapultada a outros patamares com alívio cômico em doses certeiras.

Entre pequenas costuras de roteiro e uma preocupação notável com o esmero visual, “A Pequena Sereia” oferece entretenimento de qualidade, dosando bem a nostalgia e o frescor necessário para justificar a sua produção. A familiaridade da história permite ao público caçar com os olhos os riquíssimos detalhes de cada enquadramento, tanto na composição luminosa das águas aos grandiosos balés marinhos que remetem tanto ao início da Disney (“Fantasia”) quanto ao do cinema – mais notadamente na figura do diretor Busby Berkeley.

Ao centro, carregando a obra com doses exuberantes de carisma está Halle Bailey, dona de uma voz poderosa, além da habilidade nata de transpor facialmente as principais características de uma das princesas mais adoradas da sétima arte. A nova versão é respeitosa à original, mágica e socialmente relevante, apresentando uma nova Ariel para uma nova geração que busca se ver nas telas de cinema.

Ficha Técnica

Ano: 2023

Duração: 2h 15 m

Gênero: aventura, família, fantasia

Direção: Rob Marshall

Elenco: Halle Bailey, Jonah Hauer-King, Melissa McCarthy, Javier Bardem, Daveed Diggs, Awkwafina, Jacob Tremblay

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