Por Luciana Ramos

 

No ato introdutório do seu documentário, o rapper Emicida pede licença para concatenar dez fatos históricos da construção do Brasil e, posteriormente, da periferia paulistana, para enfim, poder se apresentar. Ele sabe que, como todos nós, deriva da combinação estratos que determinam como nossos corpos transitam nas cidades em que vivemos, nossas percepções de mundo e balizam todo o nosso entendimento.

Caminhando entre determinantes que empurram pessoas negras e de periferia para as margens da cidade, descobriu o rap como expressão musical e, como o documentário deixa muito claro, de transformação. Foi na negligência das gravadoras que os artistas deste gênero se fizeram; foi apesar do descaso do mainstream que conquistaram emancipação financeira e ocuparam espaços.

Emicida, como outros grandes pensadores do país, passou a olhar o seu lugar como catalizador de mudanças concretas, que se dariam através de mensagens em suas músicas – reflexões sobre a realidade brasileira, do que negligenciamos e do que almejamos (ou podemos almejar) para um futuro mais igualitário.

Diante desta constelação de ideias, pode-se dizer que “AmarElo – É Tudo Pra Ontem” supera e muito o molde dos documentários musicais, que geralmente visam condensar a celebração de algum feito artístico a um panorama superficial do artista. Isto porque Emicida não se vê sozinho no palco do Theatro Municipal de São Paulo, mas resgata na sua passagem as mãos negras que o ergueram e que tiveram o acesso ao lugar reiteradamente negados. Assim, o seu show é o resultado de uma luta e o indício de avanço; também pode ser lido como um momento definidor da cultura do país ou mesmo da passagem individual dos presentes, que saem imbuídos das suas relevâncias enquanto cidadãos.

A linguagem simples une-se à apresentação de ideias aprofundadas sobre status quo e potencialidades de transformação do tecido social em uma narrativa belíssima, que debate a marginalização da população negra através de um branqueamento social. Naturalmente, esta ideia infiltra-se em todas as construções sociais, perpassando, portanto, a cultura, que desdenha da contribuição da raça negra no que percebe como “refinado”. Neste âmbito, são rejeitados ritmos como o samba e o próprio rap, que se fundem cada vez mais para moldar um som que dialoga com nossas raízes e, por meio das letras, expressam o descontentamento latente sobre o abismo social que molda o Brasil.

Nesta construção intelectual, Emicida ainda é generoso o bastante para declarar o seu processo de construção enquanto artista, reverenciando suas influências e as concedendo espaços de fala. Paulatinamente, expõe seu amadurecimento como artista e pensador brasileiro, personas fundidas através do poder catártico da música.

Com a caneta e o microfone em mãos, ele destila versos que perpassam neste álbum em específico a ideia de união (Amar +Elo) para conquista de uma mudança social profunda – ou, no popular ditado iorubá que abre o filme, “Exu matou o pássaro ontem com a pedra que atirou hoje”.

Assim, “AmarElo – É Tudo Pra Ontem” ultrapassa seu lirismo estético, da belíssima fotografia ao uso de texturas e granulações ou mesmo a excelente edição: é a expressão máxima de alguém que tentou desvendar os pormenores do seu país (e, assim, de si mesmo) e, através deste entendimento, traçou estratégias concretas de mudanças por meio da arte. Com ele, Emicida planta sua semente de igualdade, apontado a urgência do seu semear para que o “futuro não seja mais um ontem com um novo nome”.  

Ficha Técnica

Ano: 2020

Duração: 90 min

Gênero: documentário, musical

Direção: Fred Ouro Preto

Avaliação do Filme

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