Por Luciana Ramos

Em 1972, após ter se consolidado como a “primeira-dama da música”, Aretha Franklin sugeriu um projeto que fora visto na época como ousado por representar apenas um nicho do seu amplo público: a gravação de um álbum gospel em uma igreja batista. Filha de um pastor, ela visava honrar sua origem através do canto dos hinos que a ensinaram sobre harmonia e melodia em uma espécie de culto onde o pastor serviria como condutor musical.

O projeto seguiu adiante e a Warner Bros. sentiu o seu potencial comercial, transformando-o em um documentário que seria exibido nas televisões americanas. Para o trabalho, contratou Sydney Pollack, na época mais conhecido por seu trabalho na direção de seriados. A sua premissa enquanto diretor seguia a cartilha da época, conhecida como cinema verité, que consistia no entendimento do documentário como obra decorrente da observação objetiva da realidade, cujas interferências só se justificavam para melhor captação dos momentos apresentados.

E assim é “Amazing Grace”. A granulação e instabilidade das câmeras 16mm nas mãos de Pollack e sua equipe buscam avidamente por enquadramentos que dimensionem a experiência de dois dias. Seus rostos entrecortam algumas cenas e seus movimentos, por vezes dramáticos, demonstram a avidez em captar como cada um daqueles espectadores interpretam o que ouvem – seus olhos fechados, seus gritos de louvor, o choro, o riso, a dança.

A celebração comandada pelo pastor James Cleveland coloca Franklin mais como um instrumento religioso no sentido de que seu papel ali não é entreter – de fato, ela pouco fala com o público – mas o de cantar e, por meio de sua voz, provocar a conexão daquelas pessoas com Deus. As gloriosas manifestações emocionadas atestam o poder das letras, das melodias e da sua voz.

Independentemente da religião, o documentário pode ser apreciado pela maneira brilhante e crua com que revela o talento extremo de uma das melhores artistas que já existiu. A capacidade de Aretha de brincar com as palavras, por vezes cantando apenas silabas ou, em outras, correndo com a frase – sem nunca perder o tom – é o que muitos poderiam definir como divino. O seu dom transcende o potencial vocal, já que se mostra capaz de provocar reações catárticas e são os rostos destas pessoas em transe que atestam a sua importância para o mundo da música, profundamente tocado pelo seu talento.

Infelizmente, um problema técnico impediu “Amazing Grace” de ser lançado na época e o material bruto permaneceu em arquivos empoeirados até que Alan Elliot (que assumiu como diretor/montador da obra) e uma série de artistas como Spike Lee se uniram para retomar o projeto. A tecnologia atual pôde resolver a falta de sincronicidade entre imagem e som e nós, espectadores, pudemos ser presenteados com um dos documentários mais eficientes sobre música já feitos.

 

*Filme assistido como parte da cobertura da 43ª Mostra de Cinema Internacional de SP

Ficha Técnica

Ano: 2018

Duração: 89 min

Gênero: documentário

Direção: Alan Elliot, Sydney Pollack

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