Por Luciana Ramos

Os filmes, partindo da capacidade de construção de mundos artificiais, porém consistentes no universo limitado da quarta parede, podem servir como interessantes instrumentos de reflexão. Dentre as inúmeras costumeiras construções fictícias encontra-se a “mudança de vida” (e, por vezes, de corpo), uma guinada repentina que impõe obstáculos e a subsequente necessidade de reflexão sobre os caminhos trilhados pelos personagens.

Assim configura-se “Amor à Segunda Vista”, de Hugo Gélin. A trama apresenta os idealistas Raphaël (François Civil) e Olivia (Joséphine Japy), dois jovens que se encontram por acaso no colégio e desmaiam juntos em um banco – o início de uma bela paixão, tão lindamente condensada na elipse temporal que abre o filme. Dez anos depois, no entanto, embora casados e morando sob o mesmo teto, eles se encontram em momentos totalmente diferentes: ele virou um escritor de sucesso, egocêntrico e alheio ao mundo ao redor; ela sofre pela falta de atenção e, em especial, pelo ressentimento de ter aberto mão das suas ambições pelas dele.

Uma noite de briga intensa precede a manhã em que Raphael acorda para encontrar tudo mudado: sem sucesso, sem dinheiro e, pior, sem esposa. Na sua nova realidade, ele é professor de ensino médio na escola que cursou e logo descobre que, sem nunca o ter encontrado, Olivia tornou-se uma pianista de renome internacional. A esperada impossibilidade de aceitação da nova configuração de sua vida o leva a, com a ajuda do amigo de infância Félix (Benjamin Lavernhe), arquitetar um plano para se aproximar dela e, enfim, reconquistá-la, imbuído pela esperança de que o enlace anule qualquer tipo de feitiço/maldição que tenha se abatido sobre ele.

A princípio, o longa explora as possibilidades da sua premissa, moldando-se como uma comédia em que o foco permanece na estranheza de Raphaël diante de uma nova e grudenta namorada, os alunos que não lhe respeitam ou a frustração de saber que o maior feito da sua vida é formar uma dupla ruim de pingue-pongue com o amigo. Embora esta construção possibilite momentos engraçados, é também bastante rasa em sua abordagem, remetendo aos milhares de outros filmes que já usaram dos mesmos clichês anteriormente.

Porém, ao colocar o rapaz em contato direto com Olivia e explorar a química dos dois – e, ademais, destacar as pequenas particularidades que o fazem amá-la – a narrativa regozija-se, abrindo espaço para reflexão. Muito lentamente, o protagonista se dá conta do modo com que a tratou na sua rotina pregressa, finalmente compreendendo que a chave para qualquer relacionamento é o equilíbrio entre as partes; ou seja, não basta estar bom para apenas uma pessoa.

A sua cegueira anterior então transmuta-se na agonia de saber que ter a sua vida “de volta” também acarreta perdas substanciais para Olivia, o que o leva a um impasse moral. Dessa forma, “Amor à Segunda Vista” abraça a complexidade inerente ao romance e destrincha-o, tecendo ainda comentários sobre talento ao comparar as carreiras dos dois, mérito e perda (explorada também na cômica, porém palpável dor de Félix). Mostra-se, portanto, bem mais profundo do que parece, um belo filme que comove tanto quanto diverte.

 

 

Essa crítica faz parte da cobertura do Festival Varilux de Cinema Francês 2019

Ficha Técnica

Ano: 2019

Duração: 117 min

Gênero: comédia, drama, romance

Diretor: Hugo Gélin

Elenco: François Civil, Joséphine Japy, Benjamin Lavernhe

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Imagens:

Avaliação do Filme

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