Por Marina Lordelo
Sauver ou Périr (Salvar ou Perecer), o título original de “Através do Fogo”, filme de Frédéric Tellier, conta a história do acidente do bombeiro Franck Pasquier (Pierre Niney), baseado em acontecimentos reais. Centrada na carreira do protagonista, Tellier constrói um primeiro ato clássico de apresentação de personagem – é possível ver o seu treino físico, sua dedicação aos estudos, o carinho com sua esposa e filhos, seu comprometimento com a carreira. Ele, portanto, não tem defeitos, a não ser esse apaixonamento pela profissão e pela pátria.
Nesse sentido, o longa caminha na objetividade dos fatos, sempre sugerindo que alguma coisa poderá acontecer para que o conflito seja instaurado. A iminência da desgraça vem acompanhada de tensões constantes nos atendimentos do corpo de bombeiros, na continência matinal pelos mortos em combate, pelo som sugestivo da sirene. Franck sofre então um acidente durante um incêndio e assim, é possível acompanhar seu sofrimento e recuperação.
Com uma dinâmica eficiente de passagem de tempo através de elipses marcadas pela gestação, nascimento e crescimento dos filhos de Franck e Cécile (Anaïs Demoustier), a montagem consegue situar o espectador de forma a garantir que as transições sejam discretas e sofisticadas. Em um diálogo interessante com a luz, que leva até a casa do casal protagonista uma ideia de superexposição, mais iluminada, justificada pela presença de janelas laterais, Cécile oferece à residência a leveza e o conforto que seu marido não encontra na profissão, ainda que morem dentro do próprio trabalho. Esse contraste é importante para ressaltar a personalidade de ambos, colocados de forma dual na obra, tanto psicologicamente quanto ideologicamente (em papéis masculinos e femininos no seu sentido mais conservador).
Ainda que haja problemas ideológicos consideráveis nos papéis de gênero expostos no filme, quando por exemplo em uma sequência que o protagonista no auge da sua depressão ordena que sua esposa tire a roupa, é importante destacar os silêncios e os diálogos não verbais utilizados, sobretudo no segundo ato. Injusto com a figura feminina, Tellier e o co-roteirista David Oelhoffen, oferecem muito pouco à personagem, que atua apenas de forma coadjuvante ao acidente de Franck. Amplamente abalada e praticamente sozinha, é a esposa delicada que precisa manter o ordenamento da sua vida e de duas crianças lidando com a recuperação e a depressão profunda do cônjuge; mas, na tela, isso é apenas pano de fundo.
Não à toa, o terceiro ato investe na recuperação ampla dele, tanto física quanto emocional, esquecendo-se de Cécile e de suas subjetividades. Incrível não é apenas o homem que se sacrifica por companheiros bombeiros durante o fogo, mas Cécile, que precisa lidar com o sofrimento do marido, com sua depressão e machismo, sustentar a família, cuidar dos filhos e garantir um mínimo de dignidade a sua vida e à sua subjetividade feminina. Mas isso não está no filme – o que tem no último plano é a bandeira da França nas cores do figurino.
Essa crítica faz parte da cobertura do Festival Varilux de Cinema Francês 2019
Ficha Técnica
Ano: 2019
Duração: 116 min
Gênero: drama
Diretor: Frédéric Tellier
Elenco: Pierre Niney, Anaïs Demoustier, Vincent Rottiers
Trailer: