Por Luciana Ramos

 

No começo, eram apenas crianças em um sol escaldante, brincado com bonecas (feias) de porcelana. As meninas, entediadas, praticavam o papel que lhes era esperado: o de mãe. Um belo dia, uma boneca voluptuosa e moderna aparece como um grande molonito, levando as garotas a estilhaçarem seus brinquedos antigos e sonharem com mais.

A diversidade de profissões e, mais tarde, de representações da Barbie impactou o modo como tantas crianças aspiravam ser… mas teria a boneca ficado datada? Ela se tornou uma visão limitante da sociedade, ou ainda consegue ser uma bela ideia? Essa discussão é a base do novo filme de Greta Gerwig que, sem abdicar da abundância de cores e leveza requirida, pondera questões essenciais à Barbie, ao brincar – por meio de como a narrativa é tecida – e ao embate entre feminismo e patriarcado.

Ao centro dessa aventura, está a Barbie Estereotipada (Margot Robbie), que possui uma vida incrivelmente feliz. Um dia, porém, durante uma festa regada a glitter, se vê inundada de pensamentos sobre a morte. De onde vieram? Por que são tão insistentes? Ela tenta se livrar do problema ignorando-o, mas é acometida por inúmeros desastres: a água do banho fica gelada, ela não consegue mais flutuar do seu quarto até o carro e, pior, seus pés antes arqueados ficam chatos. Barbie decide, então, buscar a versão ginasta (Kate McKinnon) que, de tão castigada pela dona, tornou-se estranha e cheia de cicatrizes. Esta lhe conta tudo sobre o fino véu que separa a Barbielândia e o Mundo Real, e que tais questões existenciais devem vir da pessoa que brinca com sua versão boneca.

A Barbie Estereotipada então decide partir em uma aventura e, sem saber, leva um grudento Ken (o ótimo Ryan Gosling) ao seu lado. Ao contrário do seu contraponto feminino, ele não tem emprego, anseios e afere o seu valor de acordo com a quantidade de atenção que a Barbie lhe despeja. Ele realmente não tem mais o que fazer a não ser segui-la, mas, uma vez no Mundo Real, descobre outra realidade. Lá, são as mulheres que estão em dificuldades. Enquanto elas sofrem com a objetificação, eles são reverenciados; no trabalho, são chefes, quando erram, são recebidos com condescendência.

Inspiradíssimo pelo patriarcado – e forçando uma relação inexistente entre masculinidade, casacos de couro e cavalos – Ken decide retornar à Barbielândia e transformá-la em um território patriarcal. Enquanto isso, a Barbie vai descobrindo os valores do mundo real (existe uma bela passagem em que ela enxerga a beleza em uma mulher de idade), encontra suas supostas donas, uma menina adolescente (Ariana Greenblatt) e sua mãe, Gloria (America Ferrera), e enfrenta os figurões da Mattel (todos homens).

Uma das maiores armadilhas em qualquer filme que apresente a contraposição entre um mundo idealizado e sua versão real é a de abandonar cedo demais a fantasia, transbordando no público a sensação de que a realidade é tão inferior que não merece seu engajamento. Gerwig parece saber muito bem disso, pois conduz a narrativa rapidamente de volta à terra “encantada”, forçando seus personagens humanos a reavaliarem suas jornadas quando em contato com um panorama diferente.

O mundo plástico do longa é realmente fantástico, e explorado minunciosamente. A designer de produção Sarah Greenwood faz um trabalho monumental em cada composição, abusando de acrílicos, neons, paetês e fundos falsos. Assim como em filmes antigos de Hollywood, os horizontes são artificialmente pintados. Brinca-se muito com texturas e profundidades: sem paredes (afinal, Barbies não tem nada a esconder), os ambientes mesclam entre móveis “de verdade”, versões em plástico e pinturas em 2D que denunciam a artificialidade desse mundo. É uma escolha incrivelmente ousada e bem planejada, que reforça os temas narrativos e oferece um algo a mais na produção.

Esse desenho visual ultra colorido é complementado pelos figurinos de Jacqueline Durran. Ela consegue particularizar cada versão de Barbie e Ken ao mesmo tempo que reverencia um look icônico da marca. A construção estética é realmente um deleite para os olhos e esse jogo de encantamento é potencializado pelas inúmeras referencias à arena pop, incluindo uma série de produções cinematográficas, seja em modo literal (“O Poderoso Chefão”, “Playtime”, “Matrix”) ou aspiracional e simbólico (“Cinderela em Paris”, “Grease”, “O Mágico de Oz”).

Nessa miríade de sensações, o filme encontra a humanidade nas personagens de Robbie e Ferrera, que conseguem pontuar bem as contradições femininas e as consequências de cada escolha em realidades distintas – uma amplamente a favor às mulheres, e outra contra. Debate-se a construção patriarcal e o feminismo à extensão, em tom de deboche, metalinguagem (inúmeras piadas sobre a Mattel) ou, por vezes, em caráter existencialista. Em cada camada, dispõem-se pontuações sobre o significado da boneca para a sociedade, suas contribuições e limitações; suas ambiguidades e potências.

referência ao clássico “2001: Uma Odisseia no Espaço”

Uma trama tão abertamente reflexiva não é o que se espera à primeira vista de um filme sobre a Barbie, e esse é o maior trunfo de Gerwig. Seu novo longa, o primeiro de orçamento expressivo em produção e marketing, reflete as inseguranças e questões de obras anteriores, como “Frances Ha” e “Lady Bird”, mas não se esquiva do tom amplamente comercial. Mais do que tudo, “Barbie” é uma vibe, uma ideia a ser abraçada com pouca pretensão, uma obra que pode ser reassistida à exaustão.

Um olhar mais aguçado, no entanto, começa a ver rapidamente fissuras na sua estrutura narrativa. Algumas questões, como as aflições de Gloria, permanecem sem maiores aprofundamentos, parecendo sofrer da síndrome da conveniência – quando um autor apresenta um tema às pressas como desculpa para avançar a trama até um ponto específico. Os executivos da Mattel, liderados por Will Ferrell (que repete a ideia de patrão malvado de “Uma Aventura Lego”), também parecem ter pouca serventia à história. Passagens absolutamente hilárias e marcantes, como as cenas musicais de Ken, interpretadas com maestria bonachona por Gosling, são inseridas meio a esmo, ressaltando uma falta de coesão que perpassa todo o roteiro, escrito por Gerwig e seu marido e parceiro, Noah Baumbach.

Há, claramente, um tema central muito bem desenvolvido, mas “Barbie” parece abarcar todo o qualquer tipo de ideia sem filtros. São comentários sociais somados a piadas pops e êxtase visual em um tecido narrativo que, embora falho, é importante demais para ser descartado. Afinal, como já argumentado, que outro filme sobre uma boneca icônica discute pautas tão essenciais para um público amplo (a classificação indicativa é de 12 anos), de maneira tão suave e recompensadora?

Torna-se ao final, muito maior e mais relevante que suas inconsistências. Como se não bastasse, possui um painel de fundo extremamente bonito: a importância do brincar. Do mundo de “mentirinha” ao modo como os personagens se locomovem, realizam suas ações (como escovar os dentes e tomar água) e pensam, tudo é construído para nos lembrar que o mundo da Barbie é uma grande brincadeira – e que alegria é experimentá-lo no cinema.

Ficha Técnica

Ano: 2023

Duração: 1h 54 m

Gênero: aventura, comédia, fantasia

Direção: Greta Gerwig

Elenco: Margot Robbie, Ryan Gosling, America Ferrera, Will Ferrel, Issa Rae, Kingsley Ben-Adir, Michael Cera, Ariana Greenblatt, Emma Mackey, Hari Nef, Kate McKinnon, Alexandra Shipp

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