Por Luciana Ramos
Ótimos filmes nascem da análise de questões subjetivas ou do ambiente social, fruto de um processo de reflexão dos artistas que extravasa nas telas. Esse é o caso de “Benzinho”, projeto de Gustavo Pizzi e Karine Teles. Olhando para a rapidez do tempo e, assim, prevendo o momento de separação dos filhos (no sentido de amadurecimento e independência), eles, pela primeira vez, olharam para o passado e se botaram no lugar dos seus pais, que tiveram que lidar com a “saída de casa” de ambos enquanto ainda adolescentes. Juntos, elaboraram a questão em um roteiro movido pela “síndrome do ninho vazio” que acomete Irene (Karine Teles) quando descobre que Fernando (Konstantinos Sarris), seu primogênito, foi convidado para jogar handebol na Alemanha.
O anúncio é feito pelo garoto despojadamente durante um jantar em família, caótico por natureza. Movido pela animação, ele espera uma reação efusiva de todos – afinal, trata-se de uma excelente oportunidade profissional – ignorando, assim, o impacto que a notícia provoca na sua mãe. Com quatro filhos, ela mal consegue equilibrar sua rotina, sugada pela posição típica de um modelo patriarcal, que soma responsabilidades nos ombros da mulher. O aviso da partida é o baque final no seu processo de instabilidade emocional: se por um lado, tenta experimentar a felicidade do filho, por outro, não consegue parar de pensar na sua perda.
A sua falta de controle sobre a situação transparece em alguns momentos, como no que ela dança na cozinha ou no discurso verborrágico e apressado ao recolher objetos da casa de praia. Seu olhar, até o final do filme, será pontuado por uma melancolia que marca o sofrimento por antecipação, muito bem pontuado pela expressividade de Teles. Porém, mesmo fragilizada, ainda se mostra aos filhos como o porto seguro deles, onde eles encontram carinho e amor.
Este tratamento também é partilhado por Sônia (Adriana Esteves), que fugiu do marido que a agredia para refugiar-se na casa da irmã. A relação entre as duas é muito interessante por se pautar no apoio incondicional, que não dá espaço a reclamações mesquinhas, típicas do cotidiano. Uma ajuda a outra a ganhar dinheiro, a se reerguer, a se preparar emocionalmente, um retrato familiar ainda muito raro de se ver entre os filmes nacionais.
O longa funciona muito bem graças a um roteiro equilibrado e sensível, escrito por Pizzi e Teles. Este não se prende a recursos melodramáticos e trabalha o tema de forma orgânica e gradual. A preocupação em destacar a complexidade daquelas pessoas reflete-se no modo como o contexto social é trabalhado. Os inúmeros pequenos obstáculos, como a pia vazando e a porta que não abre, somados, revelam muito sobre a vivência da classe média brasileira, que busca incessantemente melhores oportunidades através do trabalho duro.
As duas análises – a subjetiva e a social – estão presentes na metáfora da casa: uma, a que eles vivem, está caindo aos pedaços. Outra, a dos sonhos, não pôde ser terminada por falta de dinheiro. Transitando entre os dois pólos está Irene, pilar de uma estrutura familiar se desfazendo (em razão da partida do filho) e ainda sem base para construção de um novo modelo, que a sustente.
Mais de perto, observam-se suas falhas, como a diferença do tratamento concedido a Fernando e a Rodrigo (Luan Teles), a quem não trata tão bem assim – ainda que sem consciência do mal feito. O modo como o garoto lida com isso, por sua vez, é igualmente significativo, oferecendo mais uma camada de interpretação ao filme.
A dinâmica familiar é trabalhada a partir de diálogos extremamente orgânicos, que insere pequenos comentários cotidianos nas cenas importantes, parecendo, assim, mais verdadeiro. O fato de os dois filhos de Teles e Pizzi atuarem no filme com a mãe contribui muito para essa naturalidade e a intimidade observada é latente. A sintonia estende-se ao resto do elenco, composto por Otavio Müller e Adriana Esteves, excelentes em seus papéis.
Todos os personagens e suas relações são balizados pelo olhar de Irene. Ela é alma do filme e é a complexidade da sua jornada que torna a história tão interessante. Essa narrativa é construída visualmente através da mescla de closes muito bem explorados e planos bem abertos, que “encaixam” toda a família no canto interior da tela, fugindo assim de moldes estéticos mais engessados.
Porém, em outros momentos, a direção incomoda por não privilegiar o que há de mais importante na cena ou, por vezes, transparecendo um artificialismo indesejado, como na sequência final. Esse sentimento causado é reforçado pelo uso de cortes bruscos, que interrompem a ação (ou reação dos personagens), deixando a percepção de que, se fossem um pouco mais extensos, poderiam provocar um efeito emocional mais potente.
Essas questões, no entanto, não são suficientes para obliterarem o apelo de “Benzinho”, universal por se tratar de uma jornada relacionável – seja do ponto de vista do filho ou dos pais. O roteiro bem construído compõe um panorama rico da classe média baixa brasileira, explorada com sensibilidade, sem uso de estereótipos. No centro, há Karine Teles, excelente como Irene: complexa, ansiosa, confusa e, acima de tudo, muito amorosa e humana.
Pôster
Ficha Técnica
Ano: 2018
Duração: 95 min
Gênero: drama
Direção: Gustavo Pizzi
Elenco: Karine Teles, Otávio Müller, Adriana Esteves, Konstantinos Sarris, Mateus Solano
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