Por Luciana Ramos
Os ataques terroristas que moldaram a era Bush ajudaram a compor um panorama social bastante perigoso, pautado no medo do outro – em geral, mulçumano ou de origem árabe – e apelado estrategicamente pelas autoridades para ampliação de seus escopos de poder. Assim como o preconceito, o medo é uma válida forma de controle por sua capacidade de anular formulações racionais e apelar ao senso de sobrevivência, que reduz o homem ao seu espírito animalesco.
Foi neste momento que apareceu um jornalista cazaque em missão à “Ianquelândia”, onde estudaria seus costumes. Por meio de esquetes que exploravam o melhor e o pior do ser humano, “Borat” teceu uma inteligente e ácida crítica ao desmoronamento moral dos EUA, pautado nos diferentes entendimentos que seus cidadãos tinham sobre a Guerra ao Terror.
Em 2020, a combinação vil e desesperadora de ignorância e ódio arranjam terreno fértil em autoridades que contestam a ciência e exploram a polarização para ganho político, sendo Donald Trump a figura central deste jogo de poucos planos e muita retórica. A sua recusa na veracidade de fatos históricos, em seguir um comportamento ético ou em cumprir protocolos inerentes à sua posição aprofundaram a fissura do seu país em dois polos muito distintos, sendo um de caráter negacionista – apto a abraçar teorias de Terra Plana e refutar dados científicos sobre a pandemia do Coronavírus.
Eis que, neste cenário inimaginável há apenas alguns anos, Borat (Sacha Baron-Cohen) ressurge, engajado mais uma vez em mostrar o quão absurda a realidade pode ser. Na trama do novo filme, baseado em esquetes interativas, o jornalista cazaque encontra-se condenado ao trabalho forçado após trazer vergonha ao Cazaquistão catorze anos antes, mas uma oportunidade de redenção lhe é oferecida: ele pode ter a vida poupada caso viaje novamente aos Estados Unidos e entregue ao vice-presidente Mike Pence um presente especial, o macaco Johnny, famoso ator pornô do país.
Uma série de infortúnios o levam a perder o animal no caminho. Em troca, ele é forçado a abrigar a filha na viagem e decide, então, doá-la a um dos homens mais poderosos da América.
Embora seja simples e linear, a trama condutora da ação, pautada na relação entre pai e filha, amarra-se em uma jornada de desafios das convenções e empoderamento feminino. Ao início tratada como um bicho (dormindo em uma jaula), Tutar (a excelente Maria Bakalova) vai paulatinamente ganhando conhecimento sobre seus direitos enquanto mulher, o que a levam a contestar a autoridade paterna – que deseja lhe entregar como um objeto – e as narrativas que circundam o machismo.
Da fantasia da princesa Melania (uma mulher feliz em uma jaula de ouro) à decisão de ser independente e seguir uma profissão, a personagem adolescente é colocada em diversas situações esdrúxulas que escancaram o paternalismo ainda regente. Como exemplos, há a série de comentários sexuais a que é submetida, o choque com a sua menstruação em um baile de debutantes que, em seu cerne, consiste na “apresentação” de meninas como pretendentes ao casamento e, ainda mais vil e absurdo, a condenação do aborto em contraponto ao silêncio em uma possível situação de estupro.
Esta sequência, por sinal, representa o ápice do filme por ser extremamente inteligente no modo como é construída, atingindo a pungência desejada sem apelar para a ojeriza – apenas brincando com duplos entendimentos em um intricado jogo de palavras que expõe o caráter hipócrita de um médico/pastor.
Instigando os personagens com quem cruza, Borat expõe a deturpação de suas visões de mundo – a violência inerente à cada afirmação negacionista e a falta do sentimento de comunidade. Neste contexto, é também interessante a sua preocupação em humanizar as minorias vilanizadas por estes grupos, em especial os negros e judeus que sofrem preconceitos há tanto tempo, revelando uma sensibilidade no humor de Baron-Cohen até então desconhecida.
É inegável também o risco que o humorista e Maria Bakalova correm diante às câmeras, principalmente ela, enquanto mulher, expondo-se a situações delicadas de abuso. A possibilidade de uma retaliação violenta compartilha com o humor o mesmo peso, assim como a vergonha alheia, sentimento que pauta a interação do público com as situações apresentadas.
Tão absurdo quanto o mundo em que vivemos, “Borat – Fita de Cinema Seguinte” é um entretenimento essencial em uma realidade polarizada e negacionista, expondo a sua ignorância, infantilidade e irracionalidade. Esperamos sempre contar com o repórter cazaque – agora famoso nos EUA e no mundo – para trazer à superfície a loucura humana e, assim, questionar o rumo que tomamos enquanto sociedade.
Ficha Técnica
Ano: 2020
Duração: 95 min
Gênero: comédia
Direção: Jason Woliner
Elenco: Sacha Baron-Cohen, Maria Bakalova