Por Luciana Ramos

Algemado, Zain (Zain Al Rafeea) é perguntado por um juiz o que o levou a querer processar os próprios pais. O menino, incerto de sua idade, já que não tem documentos, apela para a crueldade do mundo em que vive, da extrema miséria e sofrimento sem fim, realidade a qual culpa os seus progenitores, que usam ele e seus irmãos como instrumentos de trabalho, atrelando à concepção de um ser a ideia de utilidade laboral.

O processo em questão é entrelaçado ao crime que levou o garoto à prisão, o qual o filme percorre um extenso caminho para contar. Zain divide a cama com vários irmãos, os quais ajuda a tomar conta, enquanto cumpre as ordens da mãe (Kawsar Al Haddad) de camuflar opioides em roupas destinadas ao seu irmão mais velho, que ganha dinheiro traficando o material no presídio onde vive.

Agressivo e arredio, o protagonista é também apenas uma criança – e, por vezes, a mentalidade infantil, fantasiosa e criativa, aparece nas suas mentiras, fabricadas como modo de sobrevivência. O olhar que o filme se propõe a fazer da sua jornada é pautado na sua humanidade (ou incessante busca por ela, quando tantas vezes negada), na bondade que carrega dentro de si e que o leva a cuidar daqueles ao seu redor – do seu jeito – até onde consegue.

Zain possui uma profunda ligação com a irmã Sahar (Haita “Cedra” Izzam), a quem tenta proteger do predador disfarçado de bom moço Assaad (Nour El Husseini), o dono do armazém onde trabalha. Seus esforços não compensados o levam a fugir e seu olhar aguçado o faz desviar do caminho preterido para procurar refúgio em um parque de diversões que, embora decadente, representa um universo lúdico desconhecido para ele. Sua decisão o levar a conhecer Rahil (Yordanos Shiferaw), imigrante etíope que vive ilegalmente no Líbano sob o nome Tigesse.

Também experimentando profunda pobreza, a mulher se apieda da situação do garoto e faz um acordo que parece benéfico para ambos: enquanto ela trabalha, ele fica encarregado dos cuidados do filho dela, Yonas (Boluwatife Treasure Bankole); em troca, lhe oferece casa e comida. Com Rahil, o adolescente experimenta pela primeira vez o carinho, um senso de família, o que fornece sentimentos paradoxais, a alegria misturada ao aprofundamento do ódio que sente pelos seus pais.

Neste ponto, o longa de Nadine Labaki afasta-se um pouco do seu protagonista para explorar a jornada da jovem mulher, desenhando, assim, um outro tipo de incapacidade parental: a de alguém que ama profundamente seu filho, mas têm as ferramentas necessárias para uma sobrevivência digna negadas de forma recorrente. A evolução da sua história provoca mudanças importantíssimas à vida de Zain, que se vê, mais uma vez, desamparado, tendo que usar a criatividade para sobreviver.

O título, referente a uma cidade bíblica amaldiçoada e que, por isso, remete ao caos, apresenta uma realidade tão arrebatadora que se torna absolutamente impossível permanecer apático aos acontecimentos mostrados. Na construção da diretora libanesa Nadine Labaki (que atua como advogada do garoto), cada um dos personagens ganha contornos complexos, incapazes de fazer mais do que reagir ao ambiente inóspito onde vivem.

Se o olhar sobre Zain e Rahil é piedoso, o conferido aos pais do garoto é exatamente seu oposto. A monstruosidade atribuída a eles é fruto da alienação às necessidades dos filhos, vistos claramente como fardos. O garoto, por exemplo, deseja estudar, mas tem sua vontade negada, pois isso significaria uma diminuição da sua contribuição na renda. Este tipo de crueldade, observada em diversas passagens, é fundamental para o entendimento das suas razões para a abertura do processo.

Felizmente, a diretora esquiva-se do maniqueísmo fácil, oferecendo algumas chances de racionalização do comportamento dos pais que, em suas próprias palavras, tentam explicar o sofrimento que eles também experimentam. Com isso, também se estabelece a ideia de perpetuação da miséria através de gerações.

Outra armadilha a que muitas obras de cunho social já caíram é a da espetacularização da pobreza, mitigada pela diretora tanto pela adoção de uma estética mais bruta, pautada por câmeras trêmulas que acompanham os personagens e concedem um ar mais realista aos acontecimentos, quanto pela preocupação na humanização dessas pessoas, permitindo-lhes momentos de descontração e alegria, ainda que breves. Um dos exemplos da sua sensibilidade está na cena em que Zain coloca um espelho na janela para refletir a televisão da vizinha e, assim, entreter o pequeno Yonas.

Esta é uma experiência cinematográfica pungente, emocionante como poucos filmes são capazes de ser. Sua profundidade advém, além dos atributos já descritos, do talento e completa entrega de Zain Al Rafeea. Acostumada a trabalhar com não-atores, Labaki conheceu o garoto nas ruas do Líbano, onde vivia em condições semelhantes ao do seu personagem enquanto refugiado da Síria. O fato de ele ser iletrado e, assim, incapaz de decorar os diálogos, propôs um desafio adicional a ela, que realizou um trabalho intenso para extrair autenticidade dele.

O resultado é chocante e não é hiperbólico dizer que esta é uma das melhores atuações infantis nos últimos tempos. Com um rosto sofrido, olhos melancólicos e um porte bem frágil, Al Rafeea alterna raiva e empatia com a mesma naturalidade, agregando realismo às passagens vitais do filme, convidado o espectador a torcer por ele.

Felizmente, após o sucesso da obra no Festival de Cannes, onde “Cafarnaum” ganhou o prêmio do júri, o garoto e sua família foram acolhidos na Noruega, onde experimentam condições de vida mais favoráveis.

Lamentavelmente, um desfecho feliz é difícil de se esperar para o seu personagem, dado o modo como tudo conflui contra ele. O seu esgotamento em ter as chances negadas é o que há de mais poderoso – e inquietante – do filme, ainda mais arrebatador por ser uma realidade facilmente relacionável ao cenário brasileiro. “Cafarnaum” é um filme essencial.

*Filme assistido como parte da cobertura da 43ª Mostra de Cinema Internacional de SP

Ficha Técnica

Ano: 2018

Duração: 121 min

Gênero: Drama

Diretor: Nadine Labaki

Elenco: Zain Al Rafeea, Yordanos Shiferaw, Boluwatife Treasure Bankole, Nadine Labaki, Yordanos Shiferaw

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